Wednesday, August 30, 2006

Um pacto com o demônio


Um pacto com o demônio

Chamo-me Molina. Sou professora de português, estudo diariamente e devotamente a gramática. Admito, leciono sem o mínimo tesão. Algumas vezes, inclusive, até surpreendo-me quando me deparo com um aluno percebendo as palavras que digo. É, acostumei-me à indiferença dos discentes, vou à escola e exalo regras, normas, toda a sistemática e a sintaxe, apenas no ímpeto de cumprir com meu dever, e suprir minhas necessidades como uma cidadã integrante de um sistema capitalista.
Entro na sala de aula pontualmente, e também assim o faço quando esta finda. Não cultivo qualquer relação interpessoal com aquelas “criaturinhas” estranhas, os alunos, nem os repreendo, e tampouco os cativo. Essa é minha labuta.
No restante do dia tenho Tiegue para me entreter. Conto os segundos para finalmente desfrutar de sua companhia, e quando estamos juntos parece que o tempo dissipa-se rapidamente em pequeninos momentos de exaltação. Sinto que sem ele nada sou. A ponto de que quando me deparo com meu semblante em um espelho, já não sou apenas Molina, sou uma fusão de dois seres, Molina e Tiegue, que se confundem como dois líquidos completamente miscíveis.
Entendam a grandiosidade de meu amor, para que não me julguem vós leitores pelo ato indigno que cometi. Compreendam que para mim não existe nada após Tiegue, não há fervor naquilo que vejo, no que toco, no que faço, apenas no que sinto, no que sinto por Tiegue. Sim, apesar de sua morte ainda o amo. Até mesmo encontrando-me neste local imundo e devasso, ainda nutro todo o afeto que se iniciou outrora e que progredi vorazmente em meu amargurado peito.
Sei que devo contar-lhes o ato de sua morte, mas nem mesmo eu o sei. Em uma noite chuvosa e de ventos provenientes do sul, ele se foi. Foi-se e jamais voltou.
Pois vejais vós criaturas insanamente amantes da literatura, que naquele dia após o seu sumiço inesperado, tudo estava acabado para mim, por isso supliquei para quem quisesse ouvir-me e socorrer-me:
- Daria tudo que tenho para ter ao menos mais um minuto ao lado de Tiegue. Se pudesse mais uma vez tocar-lhe a pele nua, daria todos meus impagáveis pertences. Meu amado Tiegue foi-se tão novo e deixou-me sozinha e amargurada neste impiedoso mundo. Para, apenas, mais uma vez presenciar seu sorriso terno, venderia minha alma ao Diabo!
Pois assim foi. Vós acreditais que apelei para o Diabo? Pois por certo que sim, Deus jamais ouviu minhas preces, acredito que estava ocupado demais com suas tenras ovelhinhas... Assim, após minha fúnebre invocação, eis que das profundezas do Inferno, para a minha surpresa, surge um ser de aparência transfigurada a afirmar eloqüentemente: - Eu aceito!
Eu, que desde a morte de Tiegue havia adquirido extrema frieza, nem me exaltei ao ver tal abominável figura. Admito, que como uma descrente em outros planos e universos de existência, desconfiei da identidade de tal ser, porém no meu âmago, senti aproximar-se a oportunidade de rever meu mui amado Tiegue. Para certificar-me de que realmente se tratava do Deus Chifrudo, olhei bem para aquela criatura deformada e indiscutivelmente estranha e disse em um tom imponente: - Então, com o poder que lhe é conferido, traga-me Tiegue de volta!
Aquela figura, a qual não se sabia onde começava a boca e terminava os membros, de repente dirigiu a palavra a mim. Senti um arrepio subir-me da pontinha do dedão até o último fio de cabelo de minha cabeça. Porém, até que sua voz era alentadora: - Acalme-se, ser inferior! Primeiro, assines este termo de compromisso conferindo a mim tua alma.
Eu que sempre fui pensativa demais, desta vez, assinei com rapidez os papéis. Ele parecia ser um sujeito confiável, afinal seu português era impecável. Além disso, a expectativa de poder tocar novamente os lábios de Tiegue era enorme. Ansiosa, então, disse-lhe, apesar de um pouco mais reconfortada, ainda com a voz imponente :
- Não te demore, Satanás! E devolva-me meu marido!
Desta vez, sem dúvida, vós não crereis em minhas palavras, pois o que me aconteceu foi digno de uma grande piada. Assim foi, para a minha decepção e frustração, que naquele instante, surge em minha frente, aquele animal repugnante: um jegue. Não preciso nem lhes dizer que fiquei apreensiva e sem nada entender, além de profundamente irritada e indignada. Nunca pensei o quão desaforado o diabo pudesse ser, era a gota d’água. Obviamente, questionei sua atitude (agora a voz tornava-se ultra-imponente- se é que isso existe?!): - Estás a me importunar?! Vendi-te minha alma, agora cumpra com o dever de trazer-me Tiegue!!!
O diabo lançou-me um olhar irônico, dizendo-me calma e satiramente : - O único Tiegue que conheço é esse jegue, por isso se dê por satisfeita e aproveite de sua companhia, pois tens apenas mais trinta segundos.
Fiquei deveras deprimida, mas já estava acostumada em não obter aquilo que realmente almejava, por isso abracei-me naquele animal que já não me causava tanta repulsa, durante o tempo que me restava.

1 Comments:

Blogger maricota said...

ai que lindo que ficou esse blog!
e essa estóuria?
é criação dessa cabecinha acenourada?

10:32 AM  

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