Tuesday, March 13, 2007

Um segundo


Arlindo inspirou profundamente o frescor da chuva que subia ao tocar a terra, após em um movimento decidido e prolongado atirou-lhe as rosas vermelhas que segurava na mão esquerda, despedindo-se de um passado sufocante, Giovana.


A porta bateu em sua cara, sem justificativa preconcebida, obviamente supunha o motivo daquele ato de brutalidade. Porém, perfumara-se, preparara-se com todos os seus desejos, ornamentara-se como uma árvore de natal, estava ansioso para vê-la após longos 30 dias. Trinta dias? Não parecerá a vós de tamanha importância este período de distanciamento, entretanto para este tipo de relação que vos é apresentada, um segundo poderia ser fatal.


Giovana, estudante de Belas Artes, viajou para Paris no ímpeto de aprofundar seus conhecimentos. Deixara seu coração em Pelotas, sua cidade natal, onde tantas vezes selara seu amor com Arlindo.


Arlindo nunca nem se assemelhara às qualidades artísticas e profissionais de Giovana, entretanto, era um amante atencioso, e logo em um primeiro contato, não imediato, mas íntimo, conquistara os sentimentos da exímia artista.


Giovana dizia achar o cemitério um local romântico, propício para juras de amor – já que Arlindo estava fadado a zelar o sono eterno, era coveiro – todavia, a sensível artista plástica só via naquele local melancolia e hostilidade. Se não fosse o carinho cedido pelo inspirado amante, jamais teria retornado por livre e espontânea vontade àquele local.


Além de sua amada, o único orgulho que tinha e se igualava a esta era o seu jardim. Afirmava isso às poucas pessoas que tinha contato, pois se orgulhava de seu desapego às coisas concretas. Entretanto, sua característica de não-materialista não era uma opção, apenas nunca tinha obtido oportunidades de colecionar e possuir bens. Assim, não tinha ambição e conformava-se com seu viver contido, já que possuía um grande amor para escapar da monotonia.


Entendamos, porém, a complexidade de seu jardim, segredo este que ficará guardado entre nós para que Giovana não descubra e se desaponte a ponto de abandonar o nosso colecionador de corpos e flores. Afinal, não unicamente cultivava flores, mas estabelecia um tipo para cada corpo enterrado em seu cemitério.


Assim, para pessoas impulsivas, imprudentes, falecidas em um acidente de carro, suicídio, ou algum tipo de morte em que elas fossem direta ou indiretamente responsáveis, utilizava arbustos espinhosos. Já, para indivíduos calmos, e estáveis, cuja morte normalmente acontecia durante o sono, optava entre murta, lírio ou rosa.


Para aqueles cuja qualidade de curiosos é preponderante, a ponto de causar-lhes a morte em overdose ou na prática de esportes radicais, Arlindo oferecia-lhes acácias ou margaridas. Quando se tratava de um vivente introvertido e tímido, normalmente vítima de morte acidental, assassinato, descuidos na área de trabalho ou domésticos, era preferível a tília.


No caso de se tratar de indivíduos ambiciosos e vaidosos, cuja morte comum é o enfarto, Arlindo não tinha dúvidas em os ornamentar com trigo, e especialmente girassóis. Aos afetivos, cuja morte não se distanciava do próprio amor, verbena ou sabugueiro.


Giovana perguntava-se freqüentemente se o amor entre ela e Arlindo seria capaz de suportar a distância. Nunca confiara em ninguém, nem nos seus próprios pais, sequer em si própria, como poderia agora acreditar neste homem, que de uns tempos para cá lhe parecia irresistivelmente sedutor?


Não havia cultivado o ciúme em suas outras relações, até porque eram efêmeras demais para estabelecer qualquer relação de posse que despertasse a sensação de insegurança. Suspeitava nunca ter amado até então, e conformava-se em não ser capaz de tal sentimento sublime, pois só então percebia que seu orgulho era intenso demais para abrir mão de si própria a fim de fazer o bem a outrem. Arlindo a fazia sentir bem, mantinha sua relação com este, pois ele também a fazia sofrer, dando-lhe a sensação de nunca poder possuí-lo por completo, assim viajaria para bem longe, se ausentaria por um mês na tentativa de amenizar o amor que como chama invadia-lhe o peito.


A viagem para Paris estava marcada e a despedida dos amantes foi dolorida e inflamada, como se fosse um último adeus aos olhos, um último beijo às bocas.


O mês de março pareceu arrastar-se para Arlindo, fazendo com que este se dedicasse com afinco ao cultivo de seu jardim, estranhamente o número de corpos cresciam consideravelmente, ocupando-lhe mais os pensamentos. Giovana entreteu-se com o curso de Belas Artes, com as novas paisagens e com os calorosos amantes parisienses, entretanto ao retornar a Pelotas, não pôde evitar as saudades de seu Arlindo.


Assim que respirou os primeiros ares de sua cidade natal, correu aos braços de Arlindo com voracidade. Havia desbravado seu mundo interior e agora queria dividi-lo com seu amante, fazê-lo parte de sua felicidade e satisfação. Sabia onde encontrá-lo, para Giovana os homens tinham uma certa previsibilidade que dava ás mulheres uma característica de superioridade, já que nelas imperava o enigma diante do provável homem.


Esteja ou não certa Giovana ao determinar esta qualidade aos homens, acertara ao tratar-se de Arlindo, pois ao chegar ao cemitério, lá estava ele, só que acompanhado de uma mulher alta, magra e sedutoramente misteriosa.


Sentiu seu sangue pulsar bruscamente em suas veias e artérias, suas mãos a suar, sentia dor, sentia-se traída, quem era aquela mulher afinal? Por qual motivo inclinava-se para Arlindo daquela maneira? Não sabia, não queria saber, apenas gostaria de poder fazê-lo sentir-se da mesma maneira que ela, a ruir, com vontade de arrancar o próprio coração e entregá-lo nas mãos de Arlindo. Que viver miserável! – pensou Giovana. Que estúpido e contraditório amor! Precisava abandonar aquele local naquele exato segundo, entretanto permanecera imóvel, olhando-o e esperando que estivesse sob efeito de algum narcótico, tendo alucinações. Porém, não, seus olhos não mentiriam, era o momento de prosseguir seu caminho.


Já se vão três dias de sua chegada e nem um telefonema. Um desespero começava a corroer-lhe os sentidos, uma tentativa de não desabrochar, porém como todas as flores na primavera, Arlindo aflorou o amor que o sufocava. Banhou-se no néctar da paixão, e traçou um rumo não questionado, não considerou desavenças, frustrações, ameaças, simplesmente foi. A probabilidade não era suficiente para fazê-lo sequer imaginar o que o aguardava no apartamento de Giovana, imaginou-a a deleitar-se nos braços de um pomposo parisiense... Sentiu raiva e desprezo de si próprio por duvidar desta forma do tão puro amor que haviam construído, ele e sua Giovana. Talvez, estivesse ainda repousando da exaustiva e longa viagem que fizera, decidiu, então, lhe fazer uma surpresa, assim decidido e embalado por extremos sentimentos de afeto, foi à Giovana.



Para Giovana as horas eram indiferentes, contava o tempo segundo a dor que sentia, entretanto pela primeira vez pensou ser capaz de esquecer Arlindo...Se não fosse por aquela visita inesperada... Sua vontade foi de ter pousado seu corpo sobre a quente carne de Arlindo e beijar-lhe os doces lábios, acariciando-lhe a pele e sentindo suas ásperas mãos em seus mamilos intumescidos, estava sendo consumida pela febre da saudade. Todavia, a cautela era necessária, não poderia exceder-se em seus desejos a ponto de entregar-se àquele que traíra o seu amor, cansara de versos camonianos...Não podia mais “ter com quem nos mata lealdade”. Sua inspiração conquistada em Paris fora-lhe tomada de supetão ao deparar-se com o ato de covardia de Arlindo, precisava esquecê-lo, ou em pouco tempo estaria à mercê das traças, que quando criança, roíam os vestidos embabados de sua mãe, e agora tratariam de roer-lhe os próprios ossos.


Era chegado o momento de uma decisão madura, esqueceria Arlindo, poria um fim a essa paixão, ou o que quer que fosse, e novamente estaria livre para seus bailes, eventos sociais, reuniões, não que sentisse falta disso, porém facilitavam e garantiam-lhe a venda de alguns trabalhos. Este era o ponto culminante, decisivo, o ponto final.


Passando os olhos tristes pelas ruas através de sua janela, avistou um jardim de flores multicoloridas que ocupavam agora a melancólica rua de sua casa, e lembrou-se das flores que Arlindo cultivava como se fossem bibelôs. E que se um dia fossem arrancadas por quaisquer que fosse o ser, até mesmo divino, dizia ele, não teria perdão e seria penalizado sem compaixão. Porém, Giovana como era uma típica pisciana, desligada e fascinada mais no mundo sensível do que da própria racionalidade, apanhou de pronto, logo que de relance viu o belo botão de jasmim que exalava seu perfume encantador. Arlindo ao perceber a atitude catastrófica cometida por sua amada-Giovana ao seu amor – o jasmim, foi tomado por nervosismo imensurável, entretanto à prova de que seus sentimentos para com Giovana eram demasiadamente profundos e sinceros, não ousou repreendê-la, tratando de socorrer o jasmim de suas mãos e pousar-lhe sobre as madeixas louras de seus cabelos, realçando sua beleza. Ela, lembrando-se das recomendações feitas por Arlindo a respeito das flores e conhecendo sua profunda relação com estas, comoveu-se com a compreensão de seu amado ao não reprimi-la.


Este fato em sua memória preencheu-lhe de esperanças e questionamentos que percorriam seus pensamentos incessantemente. Pensou, e se de repente aquilo não fosse uma legítima traição, mas um contato casual e sem importância? E se ele ainda a amasse como outrora, como quando sacrificara suas flores por ela?


Além disso, não podia negar que os momentos ao seu lado tinham sido fantásticos, suas carícias eram insubstituíveis...Sim, poderia perdoá-lo, o que não podia era suportar a sua ausência. Esqueceria todas as injúrias, poderiam recomeçar tudo, fariam planos para o futuro, aprenderia com os erros cometidos. Giovana apercebia-se enfim que não poderia mais viver sem Arlindo, estava entregue aos feitiços do coração.


Dias antes...


Após tal aparição, cambaleou nostálgica pelas ruas nas quais vivera pouco mais de três quartos de sua vida. Não era o momento propício para compreender atitudes de outrem – especifica-se, Arlindo – entretanto, tratou de tomar suas próprias resoluções: uma carta de despedida. Acreditava com esta por um fim à dor que sentira ao avistar seu amado e sua amante, que já não era mais ela, Giovana, mas uma qualquer, ainda que bela, uma qualquer.


Estipulou os objetivos da carta e decidiu que esta deveria ser breve, e pouco explícita, que não parecesse a Arlindo uma vingança, mas que o fizesse sentir rejeitado, uma indiferença para Giovana. Imaginou sua dor ao ler a carta, e sentiu-se cruel, prazerosamente cruel.


Carta


“Procuro em simplórias palavras descrever o presente momento de meus sentimentos para ti, meu doce Arlindo. Espero que compreendas sem me guardar pesar que meu coração foi subitamente apossado por um rapaz parisiense, e sem qualquer intenção de se ser incorreta e insincera com o grande amigo que és, através desta, comunico-lhe o fim desta paixão, porém abro portas a uma amizade, na qual, não tenhamos pressa em solidificar por serem nossas diferenças demasiadamente explícitas. Com carinho, Giovana”.



Em três dias, exatamente, a carta seria lida e tocada por Arlindo, a tão derradeira carta. Um dia após, saudoso, visitar Giovana, ou ao menos tentar já que ela não havia lhe dado chance de falar-lhe, nem sequer compreender sua inesperada atitude.


Este era o segundo fatal, aquele no qual ao ler rapidamente a carta, sobressaiu-se a palavra fim. Nunca fora muito bom com o substantivo fim, afinal lidava com o fim das vidas o tempo todo, por isso tinha tanto apreço às suas rosas, margaridas, jasmins, enfim toda a vida e recomeço que seu jardim dava aos corpos que jaziam ao encontrar a fatalidade do fim. Ele próprio se considerava um fim, e Giovana era sua vida, seu impulso vital, sem ela, estaria perdido, era seu segundo fatal.


Uma frieza que há muito tentava consumi-lo fez-se parte em seu corpo e alma. Segurando de mãos trêmulas a carta que parecia absorver o suor, fluidos estes que advinham de uma forte ardência no estômago: uma indigestão da pizza recém ingerida, pós-carta lida. Da mágoa, não tinha dúvida, assim como da vingança certa, ambas solidificando-se e progredindo geometricamente à sua dor.


Quis, um dia, desvendar os mistérios do mundo, agora, só queria encontrar forma rápida e eficiente de findar com o sofrimento de perder Giovana. Nome este, tantas vezes, louvado em suas orações, era, então, um perjúrio, uma afronta até mesmo às suas fezes.


Em passos acometidos, dirigiu-se ao ateliê da artista que ficava próximo ao cemitério, aproximando, assim, os amantes. No caminho, arquitetava meticulosamente o ato da destruição, com o qual, acreditava dar um fim a tudo, denunciar o crime passional do qual fora vítima e objeto. Sem precedentes de agressividade planejada a qualquer que fosse o ser habitante da face da terra, Arlindo agiu comandado por um desejo incontrolável de recuperação de sua integridade amorosa. Assim, chegando no local almejado, avistou o semblante tão reconhecido, mas paralelamente tão dolorido.


Foi um impulso desmedido nas mãos que se direcionaram à mesa lateral, agarrando o instrumento de ponta, também fornecedor de arte. Nas costas, sentiu, Giovana, na medida do coração ainda apaixonado, arder a goiva introduzida por Arlindo, o motivo de sua paixão. A morte foi lenta e angustiante. No rosto de Giovana desenhava-se um sorriso meio torto, e nas mãos gélidas, um retrato antigo do jardim de rosas vermelhas, plantadas por Arlindo, a flor preferida da artista.

Friday, November 10, 2006

Um bater de asas


Fujo das horas mortas do relógio que pesam insolitamente sobre os meus ombros nus. Nada há que possa ser feito. Uma borboleta azul pousa na janela e vejo uma faísca de vida.
Decido seguir aquele inseto. Suas asas preguiçosas fazem-me vencer minhas pernas
desmotivadas. Quero recuperar o motivo de meu afeto. Mas, a cada dia que passa, as horas tornam-se vazias e meu coração empedra.
Subo a barulhenta Borges de Medeiros, o forte sol do 12h causa-me náuseas. Preciso voltar a comer.
A borboleta parece-me zonza, todavia contorna a esquina e adentra a rua das Andradas. Receio perdê-la de vista, pois, senão por ela, pereceria este resquício de força que me impele neste caminho.
Aqui, onde tantas vezes provei dum pout pourri de sentimentos, agora, somente a verdade de um nada profundo, um grito contido em um corpo morto.
Deparo-me com uma feira de livros, obras e obras de renomados escritores ou não empilhadas em stands, o fluxo de pessoas atropela a minha tentativa de vida. A borboleta some entre a multidão de seres. Estou apavorada.
O suor escorre grosso pelo meu corpo. Minhas pernas amolecem. Giro ao redor de minha forma fugidia. Quero explodir, implodir! Vejo imagens de meu falecido amante entre artesãos na calçada. Mas sei que não há de ser fato, é delírio.
Esbarro em um palhaço, derrubo os livros de uma banca. O ser teatral não me percebe, mas eu o percebo. Sim, não pode ser loucura! É real! É ele! Pedro, homem que em mim fizera brotar amor e saudade.
Sigo-o compulsivamente pelas artérias que pulsam do coração da cidade. A borboleta perde-se de meus pensamentos, que agora focam no desvario de reencontrar aquele ente.
Lá se vai ele saltitante, a malabares e piruetas, provoca risos e estranheza a quem seu caminho cruza. Não quero que me veja: apenas admirá-lo, para apreendê-lo como única verdade.
Um pulsar que se acelera e então uma vontade quase tímida de desvendá-lo e sorver seu membro ereto, com deleite. Amar-nos como dois animais, tal qual outrora fazíamos.
Entra em uma casa antiga, parece um teatro. Fico a sua espreita, espiando-lhe por uma fresta na cortina da janela. Vagarosamente, ele vai libertando-se das vestes. Preciso conter meus ânimos. Suas longas madeixas louras agora caem sobre seu peito nu, intento dar-lhe mordidelas no bico dos mamilos, nos ombros, no corpo todo.
Suas grossas coxas vão mostrando-se ao meu olhar faminto. Recordo quando lambia-lhe as pernas até alcançar as virilhas, as bolas contraídas em excitação e o membro...rijo, forte, viril. quero engolir-lhe todo em uma bocada!
Apercebo-me em plena rua a acariciar-me. Toco meu clitóris durinho como um pênis ereto, com toques suaves e descompassados. Tenho medo, dor. Meus bicos dos seios intumescidos. Um líquido, deslizam meus dedos feito escorregão.
Estou desfeita do todo, somente à lembrança de nossos sexos unidos, atenho-me.
Sinto um olhar que me acusa desejo. Retorno. Da cortina, Pedro, sorrindo. Agarra-me pelo braço e leva-me para dentro da casa. Estou úmida e quente. Beija-me a face docemente com seus lábios carnudos. Rogo-lhe com os olhos inflamados que me devore, logo!
De pé, levanta minha coxa direita, já despida, puxa minha calcinha para o lado e penetra-me forte, intenso e profundo.
Tamanha é a delícia em que me revolvo. Encontro-me em estado de êxtase e entusiasmo. Quero novamente explodir, implodir, só que para espalhar a todo o mundo esta sensação de deleite adquirido.
Tonta e ébria de amor, fecho os olhos, não sei mais de mim, de nada.
Percebo então um bater de asas da borboleta azul. Abro os olhos. Estou só em meu apartamento imundo.
Em um tapa explosivo mato aquele inseto encantador. Agora, sei que quero e posso prosseguir, sozinha.

Tuesday, October 10, 2006

Insetos


Angustiante destino, passadas curtas na textura íngreme de uma parede que, outrora branca, hoje amarelada pelo fluir dos anos.
Amedrontada sempre, com a não remota possibilidade de ser englobada por finos fios brancos, tecidos com eficiência pela faminta viúva negra, dedicada, em seu único objetivo, capturar e devorar suas indefesas presas.
E é isso que sou, só mais uma indefesa presa, talvez rumando para o temente fim de ser devorada por aquela negra criatura, peluda, de oito patas.
Porém, algumas felicidades encontro em meu caminho, ou melhor, alguns poucos momentos de prazer. Quando voando de parede a parede, deparo-me com a pele desnuda daqueles imensos seres, sinto e quase posso ver o sangue que corre em suas grossas veias. Prazerosa, então, pouso na carne nua e saboreio o líquido que corre incansavelmente de um lado para outro. Mas mais aflita fico eu que, muitas vezes, vi amigos vítimas de descomunal violência serem impulsivamente esmagados por um tapa explosivo.
É engraçado e espantoso o modo como os seres humanos agem, eles se dizem os possuidores do intelecto e da sapiência, os conhecedores da filosofia a da astronomia, entretanto, são racionais ininteligíveis, que não conseguem conviver em sociedade, destruindo-se um aos outros, tentando a todo custo dominar a natureza, destruindo-a em doses grotescas de estupidez e ignorância. Criam seus inseticidas, nocivos à camada de ozônio, apenas no ímpeto de eliminar-nos, nós os insetos. O que muitos homens e mulheres não sabem é que somos extremamente úteis à natureza, atuando na polinização de plantas, na produção de alimentos e medicamentos e no auxílio ao controle de pragas agrícolas, além de fazermos parte da cadeia alimentar de outros animais.
E é por isso que eu, Joana, a mosquita, decidi que alguma providência deveria ser tomada. Cansada e nostálgica, bzzzzando de lá para cá, acostumada às injustiças do mundo, revoltei-me, mas sem nenhuma repercussão. Pois, pensei: - O quê eu Joana, uma reles mosquita, posso fazer para acabar com a hipocrisia que reina no mundo dos seres humanos. Frustrei-me.
Mas eis que um conhecido meu, João, o formigo, passava por ali naquele instante, e, ouvindo meu pensamento, disse: - Joana não seja como os outros que sabem das injustiças, mas fingem que não as vêem. Afinal, não queres ser uma mosquita medíocre, não é? Faças tua parte! Talvez uma mosquitinha não chame a atenção, mas quem sabe uma legião de insetos organizados sejam ouvidos e notados.
Assim, estimulada, empolguei-me e repleta de idéias saí a convocar todo e qualquer tipo de inseto para uma reunião. Na plenária, que aconteceu no quintal de uma casa qualquer, estavam presentes: besouros, formigas, abelhas, percevejos, cigarras, moscas, mosquitos, gafanhotos, grilos, baratas, louva-a-deus, borboletas e mariposas, todos destinados a dar um basta à corrupção dos humanos.
Debatemos todos os estratagemas possíveis para se chegar à Revolução, e concluímos que a mais plausível seria: invadir o planalto central.
Um movimento anarquista foi organizado naquele fim de tarde, acabaríamos com o governo, seríamos as pestes do Estado.
Na manhã seguinte, reunidos cerca de 350 espécies de insetos, rumamos para onde se encontrava o maior responsável pela desordem nacional, o presidente da República.
Depois de dois dias de exaustiva viagem, centenas de insetos mortos, chegamos ao nosso destino, o palácio da República.
A partir daí, tudo aconteceu rapidamente: por todas as aberturas existentes foram arremessados centenas de insetos, que se espalhavam como uma epidemia pelas salas dos renomados senadores e deputados federais, e, enfim, a sala do presidente.
A anarquia chegava ao poder, a politicalha corrupta corria apavorada para as saídas, e nós insetos havíamos triunfado, éramos heróis da nação.
Mas após uma hora de vitória e comemoração, o caos. De todos os lados jatos de veneno eram lançados em nossa direção, e éramos eliminados com rapidez, apesar da luta feita por alguns companheiros para resistir, estávamos sendo vencidos.
Após duas consecutivas horas de horror e extermínio, tudo que se viam eram os cadáveres estirados no chão, os líderes de uma revolução assassinados pelos tiranos dedetizadores.
Porém, não pensem que o que fizemos foi inútil e sem-valia, pois, desde o ocorrido, jovens insetos revolucionários passaram a reunir-se em quintais de casas quaisquer, organizando sabotagens e passeatas contra o sistema.
E se prestares bem atenção, verás que de um jardim qualquer ecoará um zunido interminável de consciência e revolta, que em breve espalhar-se-á mundo afora, implodindo com esta falsa democracia que impera sobre os seres humanos, ressuscitando o instinto coletivo das criaturas, na busca ensandecida pela utópica igualdade, liberdade e fraternidade.

Crazy thoughts

Crazy thoughts

Thursday, September 21, 2006


Com a tesoura entre os lânguidos dedos rumava confiante. Havia de arrepender-se um dia. Mas o que poderia fazer?! Era o combinado, tinha que cumprir sua palavra, garantir sua honra (Pensou: maldita honra louvada nos romances cavaleirescos. De que lhes servia, senão para afirmar uma masculinidade exacerbada e dolorida, cujas vantagens conquistavam-se com o sangue.)
Também, pudera! pensou Joaninha. Quem lhe mandou ficar a fazer apostas despropositadas. Agora, que aguentasse o fado que lhe cabia. Por um momento, ao imaginar o espírito de porco do irmão, pensou que lhe aprazia toda a idéia da tesoura, dos cabelos, da vontade de tomar para si aquele pedaço de vida de outrem. Vá saber?! Há louco para tudo! dizia Joaninha.
Seus passos firmes afirmavam a necessidade de efetivar o ato ao qual se predispôs. No entanto, as suas vítimas ainda se faziam desconhecidas. Foi quando um grupo de boêmios atravessa seu caminho, cambaleantes. Cisor pensou: Malditos nefelibatas! Serão vós os mártires de minha afiada tesoura, já que para vós a luz do sol não se faz relevante, escoltados por vossa benevolente lua, fingem um viver inócuo e, agora, perante ela pagarão!
Aproximou-se, sorrateiramente, comovido com as longas madeixas negras de um dos garotos ébrios.
Tendo o grupo "pirabolante" direcionado-se para um espaço "indoors", alegrou-se. Cisor havia encontrado sua oportunidade de efetivar seus intuitos. Arrancar-lhes o símbolo revelador de uma época, podar tais ramos do mal, caprichosos nas artes de Baco.
Uma certa lembrança invadiu seus pensamentos neste instante. Buscou em um passado longínquo aquela aproximação que necessitava (ainda que não quisesse)para iniciar um processo de temor crescente.
Porém, não haveria de deixar-se levar por espasmos fugidios.
Entrou. Um lixo de lugar. Dezenas de garrafas de cachaça. Vômitos. Fedor de mijo. E, lá estavam suas vítimas.
Foi até eles crente da verossimilhança de seu futuro ato. A tesoura, sem indícios, foi retirada de seu casaco. Tão perto e tchec! Menos uma meganha para insultar as novas cenas do mundo pós-moderno. E tchec! Tchec!
Um atrás do outro foram perdendo suas cabeleiras, piolhentas ou não. Os donos dos cabelos tosados sequer apercebiam-se do corrido, parece que se encontravam em um universo distante.
A sua sacola já estava preenchida para provar sua honra aos outros cavaleiros, e nem uma gota de sangue havia sido derramada. A lembrança já não o atormentava mais.
Saiu misterioso do local. Um certo orgulho apoderou-se de Cisor, que agora era enfim um herói, havia cumprido a missão para a qual tinha sido convocado.
Sustentando a pose de machão, adentrou a taverna onde se encontravam o outros cavaleiros.
Levantou o mais alto que podia o saco de cabelos e eufórico gritou: - Aqui trago vossa encomenda! Foi de tamanha honra representar-lhes neste combate!
A homenzarada bêbada discrente no que via, caiu na gargalhada, e Vitinho sem hesitar foi dizendo: - Putz, cara! Agora tu, ao menos, já tem cabelo suficiente para tua peruca!
A euforia generalizou-se pelo boteco. Cisor, tendo despencado de seu alazão, levou os mesmos lânguidos dedos a sua redonda cabeça e lhe veio a lembrança que tanto queria sufocar.
Olhou para aquele saco de tão variados cabelos e rumou confiante, novamente.
Os dedos tocam a campainha: Dim Dom! Cisor com seu rosto esperançoso: - Aqui se faz perucas?!

Tuesday, September 19, 2006

Masturbação Conceitual


Supôs que seus tormentos pudessem ser fruto daqueles tantos dias que tivesse negado a possibilidade de efetivar sua existência concreta, agora era tarde.
Lembrou de seu pai, Lévi, influenciado por qualquer pensamento francês, tantando buscar a unidade de tudo, a essência das coisas. Acreditou sempre estar fugindo da superficialidade do saber particular, e agora o que restara de seu particular? Agora era tarde...
Karl, aquela bicha velha e barbuda, dizia a ela para relaxar, ver que ao menos se apercebia de haver construído submissões, e que sua bunda continuava tão sólida quanto nos seus 20 anos. Porque dera ouvidos aquele depravado sem qualquer noção de núcleo social, sempre proposto a constituir amálgamas, perguntava à ela a psicóloga. Esta buscava compreender sua psiqué insatisfeita de meia-idade e insistir na elaboração de um fato social convincente. Mas, agora era tarde...
Quis contar à psicóloga - mas como sempre estivera acostumada a omitir certos detalhes, dizia cotidianos, mas não de sua essência; nunca chegara a contar sua relação solitária e sempre instrutiva com seu pai. Se contasse à estudiosa da psicologia que não tivera uma mãe presente, ou parentes e nenhum namorado que tivesse sobrevivido mais que um ano; logo, cairia no conceito do geral da médica.
Certo dia, saindo do consultório da médica, após de, em um surto, ter beijado-lhe a boca e sugado-lhe o corpo.(na verdade, a médica que a havia atacado; já que, a doutora dispunha de uma sexualidade dúbia, capaz de despertar e ser despertada desejo pelo mais frígido ser). Aí, pegou um ônibus, um tanto quanto embriagada pelas ações anteriores. Não sabia para onde ia.
Bem, de fato, sabia que não sairia daquela cidade tão pequena, em cuja estrutura tantas vezes buscara um universo. Achando que compreendendo o todo daquele lugar poderia compreender os fluxos sociais de qualquer outro espaço.
O ônibus balançava causando-lhe enjôo, mas esse sentimento já havia apreendido da estrutura de sua vida; agora, queria algo novo, completamente seu. Passara a odiar como ao observar as pessoas vivendo, percebia o quão iguais todos eram, como todas as ações e reações assemelhavam-se. Porém, agora era tarde...
Porque recém havia posto fora sua única chance de ser única entre tantos desvarios coletivos: as mulheres e sua paranóia em mostrar a independência adquirida; os homens buscando demonstrar uma sensibilidade inexistente; as crianças sendo analisadas por suas paixões internáuticas e televisivas; os referendos pseudo-democráticos despertando nas pessoas a crença de poder discutir as resoluções governamentais. E nos outros lugares? Apenas outras questões rompendo na boca das multidões para forjar o tédio de uma vida tão universal e repetitiva.
Sahlins conheceu ao descer daquele ônibus de idéias. Sem nada falar, Sahlins entregou-lhe um envelope dizendo: "Aqui esta a chave para teus anseios".
Correu atrás do homem, gritando: "Sou Mary, diga-me que és e tudo que sabes. Revele-me a pureza e o perigo de teu ser".
Sahlins entrou em um carro de cor escura. quando o carro já dava sua largada, enfiou a cabeça pela janela e disse: "Apropria-se do geral sem perceber que o faz a partir de teu particular".
Mary não podia compreender aquelas palavras. Agora era tarde...
Se tivesse sido uma menina pura, conformada em estar encaixada nesta teia social...quem sabe até ter sido educada por freiras...Agora era tarde demais.
Estava cansada das teorias confusas que nada faziam a não ser complexar seu viver. Até mesmo a linguística e suas máscaras insistiam em forjar situações persuasivas em diálogos ditos informativos.
Um parar de mundo era insuficiente pois tudo haveria de recomeçar. Em algum local, uma forma de vida construiria suas malditas regras de inclusão e exclusão. O que tinha que decidir era se agora estaria aliada aos perigos que intentavam implodir esta teia social; ou à pureza tão atrelada e costurada? Now it was too late...

Monday, September 18, 2006

Necrofilia


Necrofilia

No espaço de inacreditável sintonia, encontrei-me extasiada. Perplexa nas suas relações interpessoais, pude ingressar em suas construções de pensamentos, e meio aos meus tormentos, apercebi-me em uma, fisiologicamente explicável, necessidade de urinar.
Os objetos desconhecidos rondavam minha percepção e, vagarosamente, ía fazendo-me parte daquele universo de sensações.
Tentei conter os complexos, as mágoas, mas não pude evitar a vontade que progredia cautelosamente neste tão frágil mas complexo corpo.
Em direção ao tão conhecido sanitário, rumei quase sem sentidos, devido ao alto nível ópico em que me encontrava.
Quando finalmente pude encontrar a almejada porta, que se abria como um parque de diversões diante de meu agonizado corpo, mal pude evitar o gozo que percorria meus sentidos como uma corrente de violentas águas prestes a rebentar a represa que as contêm.
Sentei-me e o líquido sem sutilezas foi por mim despejado, em buraco neste momento, acolhedor, eliminando as impurezas há tão pouco acumuladas em meus rins.
A urina descia como um rio sorridente navegando os limites da privada, e naquele momento filosofal, de observação pelas paredes desconhecidas, vi a cortina de florzinhas, sedutoramente, escondendo a banheira onde as pessoas que habitavam aquele coito lúdico banhavam-se.
Uma impetuosa vontade de desvendar o mistério que aquele plástico guardava invadiu meus sentidos e, em um súbito movimento, a abri.
Penso, quando algo é aberto, inúmeras possibilidades envolvem nossos pensamentos, determinando verossímeis ou inadmissíveis visões e sensações. Mas, desta vez, o extraordinário fez-se presente e, ainda hoje, pergunto-me se não foi delírio alcoólico ou sensação palpável.
Aquele muro aprisionava um ser, que senão morto, parecidamente desprovido de vida, sua pele e lábios roxos, sua fisionomia era de um defunto. Este me olhava fixamente, determinando com seu olhar suas mais obscuras intensões.
Sem acreditar no que lia em seus olhos, agi impetuosamente, molhando seus lábios com meu desejo. Lambi vorazmente sua suculenta boca, de tal forma o fiz, que se vivo o ser fosse teria eu sentido o salgado de seu sangue em minha língua. Chorei em orgasmos múltiplos, entregando-me profundamente aos seus imprudentes e mórbidos desejos.
Transei com um defunto, sim, trepei no morto. Engoli suas partes frias, e voluptuosamente senti seu membro roçar minhas coxas e invadir minhas entranhas prazerosamente. Finalmente, e como jamais poderei sentir novamente gozei o gozo que transcende todas as percepções possíveis.
Seu corpo que parecia fortificar meus complexos sentimentos fazia-se frio dentro de mim.
Ao refletir o ato consumado, entendo que o prazer perpassa esta carne tão exposta aos olhos, que seduz e abrasa pensamentos. O gozo que não se limita toca-nos a alma, liberta-nos além do que se possa declarar.
Meu corpo imbuído de fluidos busca tua carne como instrumento para atingir teu espírito. Todavia, longe de minha vontade seria profanar o corpo de mortos, já que não invadirei cemitérios em busca de carnes pútrefas. Até porque, neste viver contido, corpos frios perambulam pelas avenidas, expondo seus mais sórdidos desejos, refletidos em toques intensos de pura diversão. Meu corpo é todo instrumento do gozar, e que depois os vermes me comam a carne, mas só depois de haver sido de toda a utilidade que me aprouver.

Thursday, September 14, 2006

Minha dor

A sua existência vaga atormentava-a, ainda que a tivesse descoberto há muito tempo, mantinha-se a sensação de inconformidade.
Repare que para Mirela o mundo colocava-se de maneira adversa, sua relação com o tempo e com as cousas era efêmera, tal qual um beijo despretensioso em uma noite quente de verão.
Aí, pela primeira vez, decidiu relembrar-se dos tempos d'outrora, para construir, quem sabe, uma identidade para sua dor.
Acontece que, até então, nada era digno de sua dor: tentara a perda de um ente querido, a separação de um amante, a frustração de ser rejeitada, mas nenhuma destas coisas pareciam suficientes para qualificar a dor que tantas vezes vira descrita nos olhos de pessoas ao seu redor, e jamais conseguira alcançar.
Perceba que Mirela experienciava tais sensações, que acaso não acontecessem por livre força do destino, ela as impelia brutalmente, tudo em nome da busca para encontrar sua dor.
- O que poderia doer como mil afinetadas pelo corpo todo? Dor de que me faria expandir pelas veias, artérias, ossos e músculos, rasgando-me em duas metades distorcidas?
Resolveu, Mirela, procurar nos outros causas que talvez depertassem o motivo de sua dor.
- Eu já experienciei a dor de todo um universo, dizia Alfred. Em um maldito jogo de azar, ganhei a vida toda, inclusive uma mulher para me amar e três filhos meus gerar. Depois, como todos os vícios que fazem degenerar, perdi tudo, inclusive o gozo de amar.
Insatisfeita com a narração dolorida do já apostador não-sucedido, Mirela decidiu experienciar por si só a realidade de infortunada pessoa.
Todavia, o dessabor de perder algo possuído, ainda que tivesse lhe causado tamanha indignação, não fora suficiente para arrebatar-lhe o ar dos pulmões.
Um enorme cansaço havia adquirido, isso sim!
Sentou-se em um banco de praça e, pensando que já havia percorrido todos os universos desencanto onde poderia encontrar sua dor, encontrou uma infeliz senhora.
Aquela mulher cuja tez revolvia-lhe o estômago, de repente pareceu-lhe sentir profunda dor.
- Não há dor maior que não se permitir doer.
Meus anos de secura desenvolveram em meu amargurado peito uma dor sem fim.
Se vejo que hoje nunca houve tempo para experimentar todas as angústias de uma separação, é porque nunca me permiti a ofensa de um desamor. Busquei sempre nas altas colinas manter-me distante das profundezas aflitas de um sofrer por amor.
Quando penso que luto com a verdade que acredito ser e a verdade que gostaria que fosse, percebo que mascaro a dor que se no meu corpo há, finjo não senti-la. Com medo de vir a dar-me conta dela, procuro-a, prescrevendo motivos para encontrá-la de outra forma da qual acredito ser.

Mirela lembrou-se então de seu antigo amante que havia abandonado aos prantos em um domingo de sol, com o pretexto de que nada havia mais ali para viver.
Não conseguia compreender a dor em que se consumia aquele homem, cuja visão ofuscava qualquer imagem que não viesse de encontro ao semblante dela, sua eterna amada.
Nunca havia vivenciado aquela dor da despedida, após três anos de uma história de paixão, havia abandonado seu passado, como quem deixa uma cidade para a qual não se pretende retornar.
Mirela, enfim, atordoada pelas memórias que agora esclareciam, aceita a fatalidade de sua dor ou como sempre pensara a falta dela.
- Tenho agora compreendido que a minha dor não cabe em mim.
A minha dor não vale vossas lágrimas, não alcança a dor de vosso ego ferido, ela não me basta, não me abandona.
A tua, escandalizada pelas ruas, sufoca a minha, tão insignificante e despropositada.
A minha dor é prepotente, é desmerecedora de qualquer demonstração, ela se cala e se consente. Ela se esvazia mediante vosso pranto, ela não se explica por si só.
A dor que em mim habita, envergonha-me, causa-me asco, porque ela não tem espaço e, desnuda, perpassa as horas vagas de meu viver inerte.
A tua dor desconsidera a minha e atropela-me em soluços, porque a minha dor é só minha, ela não sensibliza as massas tal qual a tua. Agora, entendo, a minha dor não se propõe ao mundo, ela nasce e morre em mim, consumindo-me. E eu já não caibo em mim, esvaio-me pelas ruas, indecente, desavergonhada, sem qualquer aparência de resquício de dor.
Minha dor, implodida, atravessa as paredes e não se instala em nada, mantem-se a esmo, dentre as nuvens de vapor que sopram de teu telhado.