Thursday, September 14, 2006

Minha dor

A sua existência vaga atormentava-a, ainda que a tivesse descoberto há muito tempo, mantinha-se a sensação de inconformidade.
Repare que para Mirela o mundo colocava-se de maneira adversa, sua relação com o tempo e com as cousas era efêmera, tal qual um beijo despretensioso em uma noite quente de verão.
Aí, pela primeira vez, decidiu relembrar-se dos tempos d'outrora, para construir, quem sabe, uma identidade para sua dor.
Acontece que, até então, nada era digno de sua dor: tentara a perda de um ente querido, a separação de um amante, a frustração de ser rejeitada, mas nenhuma destas coisas pareciam suficientes para qualificar a dor que tantas vezes vira descrita nos olhos de pessoas ao seu redor, e jamais conseguira alcançar.
Perceba que Mirela experienciava tais sensações, que acaso não acontecessem por livre força do destino, ela as impelia brutalmente, tudo em nome da busca para encontrar sua dor.
- O que poderia doer como mil afinetadas pelo corpo todo? Dor de que me faria expandir pelas veias, artérias, ossos e músculos, rasgando-me em duas metades distorcidas?
Resolveu, Mirela, procurar nos outros causas que talvez depertassem o motivo de sua dor.
- Eu já experienciei a dor de todo um universo, dizia Alfred. Em um maldito jogo de azar, ganhei a vida toda, inclusive uma mulher para me amar e três filhos meus gerar. Depois, como todos os vícios que fazem degenerar, perdi tudo, inclusive o gozo de amar.
Insatisfeita com a narração dolorida do já apostador não-sucedido, Mirela decidiu experienciar por si só a realidade de infortunada pessoa.
Todavia, o dessabor de perder algo possuído, ainda que tivesse lhe causado tamanha indignação, não fora suficiente para arrebatar-lhe o ar dos pulmões.
Um enorme cansaço havia adquirido, isso sim!
Sentou-se em um banco de praça e, pensando que já havia percorrido todos os universos desencanto onde poderia encontrar sua dor, encontrou uma infeliz senhora.
Aquela mulher cuja tez revolvia-lhe o estômago, de repente pareceu-lhe sentir profunda dor.
- Não há dor maior que não se permitir doer.
Meus anos de secura desenvolveram em meu amargurado peito uma dor sem fim.
Se vejo que hoje nunca houve tempo para experimentar todas as angústias de uma separação, é porque nunca me permiti a ofensa de um desamor. Busquei sempre nas altas colinas manter-me distante das profundezas aflitas de um sofrer por amor.
Quando penso que luto com a verdade que acredito ser e a verdade que gostaria que fosse, percebo que mascaro a dor que se no meu corpo há, finjo não senti-la. Com medo de vir a dar-me conta dela, procuro-a, prescrevendo motivos para encontrá-la de outra forma da qual acredito ser.

Mirela lembrou-se então de seu antigo amante que havia abandonado aos prantos em um domingo de sol, com o pretexto de que nada havia mais ali para viver.
Não conseguia compreender a dor em que se consumia aquele homem, cuja visão ofuscava qualquer imagem que não viesse de encontro ao semblante dela, sua eterna amada.
Nunca havia vivenciado aquela dor da despedida, após três anos de uma história de paixão, havia abandonado seu passado, como quem deixa uma cidade para a qual não se pretende retornar.
Mirela, enfim, atordoada pelas memórias que agora esclareciam, aceita a fatalidade de sua dor ou como sempre pensara a falta dela.
- Tenho agora compreendido que a minha dor não cabe em mim.
A minha dor não vale vossas lágrimas, não alcança a dor de vosso ego ferido, ela não me basta, não me abandona.
A tua, escandalizada pelas ruas, sufoca a minha, tão insignificante e despropositada.
A minha dor é prepotente, é desmerecedora de qualquer demonstração, ela se cala e se consente. Ela se esvazia mediante vosso pranto, ela não se explica por si só.
A dor que em mim habita, envergonha-me, causa-me asco, porque ela não tem espaço e, desnuda, perpassa as horas vagas de meu viver inerte.
A tua dor desconsidera a minha e atropela-me em soluços, porque a minha dor é só minha, ela não sensibliza as massas tal qual a tua. Agora, entendo, a minha dor não se propõe ao mundo, ela nasce e morre em mim, consumindo-me. E eu já não caibo em mim, esvaio-me pelas ruas, indecente, desavergonhada, sem qualquer aparência de resquício de dor.
Minha dor, implodida, atravessa as paredes e não se instala em nada, mantem-se a esmo, dentre as nuvens de vapor que sopram de teu telhado.

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