Wednesday, August 30, 2006



Almas Penadas

Dizem que o fim justifica os meios, mas para Hebert o meio justificava seu fim. Os românticos que morrem por suas amadas, e sofrem quase que irracionalmente, lembram-me Hebert, que teve esse mesmo fatal e bucólico destino: encaminhou-se para as ruínas por um capricho de um desconhecido.
Hebert não era escritor renomado, porém lhe bastavam seus romances piegas, de pouca criatividade, superficiais. Sentia um gozo transcendente ao findar as longas narrativas que ao menos lhe rendiam o pão de cada dia e uma morada considerável. Não era um homem de extrema felicidade, mas sobrevivia, tinha objetivos, alimentava-se de amores platônicos, seus sentimentos resumiam-se aos de seus personagens, vivia em seu mundo de literatura medíocre.
Entretanto, aquela mulher inexplicavelmente bela, daria um fim àquela sua rotina, ao seu dia-a-dia contido e de pouca ousadia. Ela preencheria locais jamais habitados em sua alma, terminantemente, arruinando com seus dias de romancista. Hebert já não via mais motivos para compensar sua carência emocional em narrativas longas, densas e entediantes. Agora, encontrava-se no ápice daquilo que chamamos “branco de escritor”, porém, finalmente, vivia intensamente, obstante das teorias epicuristas com que sempre baseara seu cotidiano. Este amor levou-o a desgraça, o infeliz ria do nada, passeava de mãos dadas na praça, fumava baseado. Edi, a nomeação do caos na vida literária de Hebert, foi-se tão fácil como veio.
Edi era fascinante, gostava de arte, adorava ir a museus, e tinha


mãos de artista, desenhava traços desdenhosamente, com uma facilidade impressionante. Nada a aborrecia, e logo de início amou Hebert devotamente. Despertando neste homem sentimentos exacerbados, dos quais ele jamais havia ousado ter para si, apenas os projetava nos protagonistas de seus romances.
Entretanto, uma rua deserta, em uma noite enorme, quando Edi rumava à casa de seu amante Hebert, um homem cruzara seu caminho, sua inocência fora tomada, era seu último suspiro de vida, o fim de sua trajetória, três facadas no peito.
Hebert aos poucos foi perdendo tudo aquilo que conquistara, nem da fala, que com muito custo sua mãe lhe ensinara, utilizava, resmungava, sons mudos. Já não tinha mais o amor, e nem inspiração para prosseguir com seus escritos, tornava-se um boêmio, entregue aos caprichos do luar, ao cuidado das estrelas e dos bêbados que lhe faziam companhia. Obviamente, perdera as poucas amizades que ainda cultivava. Sua única distração era embriagar-se com alguma garrafa de whisky ou cachaça que a muito custo barganhava em um bar qualquer.
Só não havia cometido suicídio, na noite que ficara sabendo da morte de Edi, porque não tinha nem coragem para findar com seu sofrimento. Era um covarde, sem nenhuma qualidade, exceto de embebedar-se e mutilar-se. Pois, apesar de não ter coragem para cortar os pulsos em um golpe mortal ou atirar-se na frente de um ônibus ou de cima de algum prédio, tinha o hábito de fazer pequenos cortes em sua carne, gostava de ver o sangue resvalar por entre seus tecidos, e de lambê-lo na pele, deleitando do gosto salgado que sentia no ápice da língua. Já não se deprimia com a falta de amor que presenciava em seus intermináveis dias, tornara-se amargo, descrente nas profecias do coração. Não queria mais qualquer relação interpessoal. Estava só, completamente só, e não via motivos para sorrir, o fogo do amor o havia despido, e agora estava completamente nu, nu de qualquer sentimento de afeto.
Porém, depois de tanto tempo sem uma emoção que lhe habitasse o peito, o inesperado. Na leveza do caminhar, cabelos soltos a dançar com o soprar do vento, a mesma aparência de quando pela primeira vez a viu – não como da última vez, pele roxa e fria, rosto inexpressivo, não – agora, ela sorria, sorria para ele...
Era sua amada Edi que havia voltado para ele, do outro lado da calçada acenava, chamando-o para junto dela. Os olhos de Hebert pareciam retomar o brilho de outrora, até um sorriso insosso começava a brotar no canto da boca.
Relutou. Não podia crer que ela voltara depois de lhe deixar com o coração dilacerado, dissipado pelas calçadas da cidade o seu afeto. Ainda assim, nutrindo uma certa desconfiança, Hebert foi ao chamado de sua amada. Devido ao elevado nível alcoólico em que se encontrava, com dificuldade, levantou-se, esforçando-se para se equilibrar nas finas pernas. Deu um, dois, três passos... agora só precisava atravessar a rua, para, finalmente, tocar os braços nus de Edi, a pele macia e cheirosa.
Tão perto, mas tão longe para Hebert, um ônibus. A colisão, uma gritaria desmesurada, uma multidão de pessoas ao seu redor. Alguém diz:
- O infeliz está morto.
Em meio a toda aquela desgraça, as entranhas de Hebert semi-expostas, o pavor no olhar das pessoas. E, novamente o amor havia arrebatado o amante. Pela segunda vez, Edi abandonara Hebert, pois, novamente, estava só, atirado na calçada. Traído pelas artimanhas do coração. E os romances levavam mais um corpo sedento, mais uma alma penosa.
Conseguira, o romance, por à prova a infelicidade de seres que entre seres não conseguem fugir da proeza do amar, são apenas almas penadas vagando a esmo pelos céus cinzentos, envoltos por uma neblina tênue de amargura e solidão.




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