Wednesday, August 30, 2006



Mito de Vecordia


Pelas lavas que ardem no flamejante Aqueronte, pela pérfida boca de Hades que profana virgens ninfas, vejam esta estória que longe de ser fictícia, acontece a um palmo de meus olhos, tendo-me como alvo de seus acontecimentos. Para que entendam a presente situação, devo explanar-lhes o passado. Afinal, não queiram antecipar os fatos, para que longe de qualquer argumentação julguem-me culpada do circo que aqui se alastra.
Apresento-lhes a mentora de minha desgraça, aquela que longe do leito de sua mãe e dos calorosos braços de seu amante vem para disseminar desgraça entre os mortais. Proserpina, a mulher que se esconde por trás de um angelical semblante, um sorriso insosso e dissimulado. Escutem com atenção o vento que sopra pelo orifício revelador deste humilde ser, pois um súbito tremor apossar-se-á de vossas almas ao desvendar a devassidão desta fêmea que lhes apresento.
Proserpina pariu duas demoníacas crianças que lhe rasgaram o ventre, sugando-lhe o leite dos seios e toda alegria da alma.
Há muito não sentia o calor do sol e sua magnitude, condenada às paredes de seu melancólico domicílio, viu além da expressão visível do ser humano, enxergou através da carne, e viu a corrupção do indivíduo sentindo-o em seu próprio corpo.
Proserpina desde jovem fora entregue aos cuidados do Dr. Vanhruvall, o qual era obstinando a Ciência, dedicado à medicina, aos estudos da psicologia – a psiqué. O Dr. sabia como lidar com uma alma, abnegando-se às dores do paciente e aos sacrifícios do corpo para a salvação da alma. Proserpina fora sua amante, suportando suas tempestuosas mudanças de humor, suas excentricidades no leito. Deu-lhe, durante o matrimônio, duas bestiais crianças, as quais trataram de infernizar os poucos momentos de descanso de Madame. Poderão observar, em breve, que o comportamento dos jovens era sem via de dúvidas maléfico, suas atitudes poderão ser consideradas fora do padrão comum para indivíduos que acreditam ser sãos, mas, compreenderão que aquele sentimento complexo, anormal, que lhes diferenciava de outros pequenos advinha de seu concebimento, de sua criação, rejeição, estava intrínseco na existência. Era o despertar para o obscuro e complexo viver, ver além dos limites que nos são expostos, violar a normativa, criando um universo desencanto, banhados pelas águas turbulentas da loucura.
Duas crianças, um casal, exatamente o que Madame sonhara. Entretanto, a cada dia via sua ilusão tornar-se um pesadelo, que pagaria com sua própria carne. Logo de início, os pequenos demonstravam as necessidades normais de qualquer bebê, entretanto via-se nos seus pequeninos olhos a falta de um certo brilho, que era substituído por um olhar melancólico e aflito, de uma morbidez intransponível.
Dr. Vanhruvall tentou criar os filhos segundo normas e regras, entretanto, cada vez mais, sucumbiam as leis do pai. Primeiro, tentemos compreender este homem: apesar de seus modos rudes e intempestivos, tinha sapiência ao domar as criaturas habitantes do sótão da casa. Os tratamentos parecer-lhe-iam dolorosos, pois estão sob os olhos de mentes sãs. Porém, se entre vós encontra-se um corruptor da verdade, um transgressor das normas e das leis de Deus, socialmente, denominado louco, entenderá e se arrepiará ao saber o que aguarda o ser que se abstém dos costumes sociais, e por ser de deficiente patologia, é exposto a atividades de doutrinação. Eu mesma, anteriormente a minha salvação pelo Dr. Vanhruvall, experimentei um pouco da dor da carne. Obviamente, nunca fui considerada uma insensata de fato, perdi a razão por um instante, e apenas bastava que uma pessoa de sensibilidade aguçada se apercebesse de minhas habilidades e dons. Estas cicatrizes que me ficam espalhadas pelo corpo são para que me lembre de meus erros...mas, não foi por mal que os fiz, minha alma estava doente: feria o exterior na expectativa de não sentir o que lá dentro doía, cortei os pulsos em um movimento súbito, porque estava desesperada, cansada, não suportava mais o hálito fétido de meu pai em minha nuca....e...e...sua voz...sua voz, sussurros, gemidos....por que estava eu no mundo? Qual a lógica de minha existência?
Um momento, nos concentremos no Dr.. Desculpem-me o momento anterior, é que sou um ser demasiadamente sensível, além disso possuo habilidade com a interpretação dos sentimentos, por isso me exalto ao recordar qualquer instante de uma suposta pulsação acelerada. Bom, Dr. Vanhruvall tem inúmeros objetos de punição, com os quais ensina aos doentes a importância dos valores. Alguns são realmente severos, mas é que os crimes dos loucos são de tamanha gravidade que atitudes drásticas são de inquestionável necessidade, assim diria o Dr.. Já a mim apaixona e resplandece os atos de insanidade, e as punições parecem alimentar a loucura, aumentamos a sua qualidade de apaixonados, extravagantes, de uma natureza envolvente e mágica.
Antes de Madame juntar-se a nós, vivíamos em uma serenidade longínqua de qualquer perturbação, o Dr. acreditava que curava os doentes, acreditando ser um cientista da alma, e eu via aos olhos nus a loucura abranger-se pelas frias paredes da casa da salvação. Enfim, ao meu ver e ao de Dr. sempre exercíamos a salvação, só que em concepções divergentes de se estar salvo. Apesar de nossa harmonia, o Dr. sentia necessidade de alguém para compartilhar o leito. Estupidez sua, pois meus agrados, e minha fértil imaginação sempre saciaram suas mais obscuras fantasias. Disse-me ele que precisava de herdeiros, e eu com um ventre podre, morto e infecundo não poderia trazer a vida. Além disso, meus objetivos e meus anseios nunca foram o de originar vidas, mas de as conturbar, libertá-las do equilíbrio do universo, para que pudessem compreender de fato os mistérios que permeiam o corpo e a mente. Ciente de meus pensamentos, o Dr. reconhecia-me desequilibrada, ora, logo eu, que sempre fora tão devota aos seus anseios.
Proserpina nunca teve a minha genialidade e astúcia, rabiscava anotações em um pequeno diário... Certa noite, enquanto consumiam a ceia, escapei de meu quarto para espiar-lhe o pequeno caderno. Entrei sorrateiramente no dormitório de Madame, e lá estava o diário chamando-me para folhear-lhe as páginas. Não foi culpa minha, ele me seduzia com sua capa radiante de couro tingido dourado. Nas primeiras páginas narrava suas fantasias antes de juntar-se a nós:


Hoje, buscar-me-á meu esposo. Já o vi em uma foto. Ele é de uma idade avançada, entretanto, vive sob os bons costumes de uma família nobre, assim cuidou de dizer-me a conselheira do abrigo. É um senhor polido, de modos corretos, um doutor, Dr. Vanhruvall. Hei de fazê-lo um homem muito feliz, e ele dar-me-á um belo casal de filhos. Estou um pouco nervosa, não sei ao certo como devo portar-me, mas tratarei de me esforçar...


Oh, mas que tola. A pobre menina órfã resgatada para um mundo de extravagâncias, de riquezas incalculáveis, proclamada rainha de um castelo. Não creio que existam ainda tais mentes em nossa sociedade. Esta foi a primeira vez que pude compreender porque fica ela confinada àquele quarto vazio e escuro. Proserpina, a donzela que se desilude com a cruel realidade...Ha, ha, ha, um conto de fadas... não é digna desta tragédia que vos é contada.
Com o passar do tempo, foi ela apercebendo-se de como funcionavam as coisas na casa de Dr., eu sempre soube que não daria certo, afinal Madame não poderia concorrer com meu talento e esperteza.
Dia após dia, ficava ela trancada em seu quarto, a chorar copiosamente. Algumas vezes, até fiquei pesarosa dela, pois o doutor tratava-lhe com desdém, só indo visitar-lhe no romper da noite, acreditava eu, para apossar-se de seu corpo. Na verdade, acreditava que o Dr. apenas a procurava para germinar-lhe no ventre os filhos. Pois, toda noite, vinha visitar-me em meu quartinho, cheio de desejos e reclamações sobre a Madame. Nosso amor sempre fora intenso, utilizávamos todos os artifícios para encontrar o prazer da carne. Transávamos por toda a casa, em seu escritório, na cozinha, nos dormitórios... uma vez, copulamos, até mesmo em seu consultório, onde guardava os instrumentos de tortura. O Dr. parecia sentir prazer ao ver-me sofrer, gostava de chamar-me de Proserpina, de início não me agradou, mas eu o entendia.
É claro, que o tempo que desprendia comigo foi reduzido, fiquei deveras irritada, e tive algumas crises. Dopei-me com algumas ervas para aliviar a dor que corroía meu peito. Então, o Dr., possesso com o meu ataque de histerismo, trancou-me em um quarto escuro por tempo indefinido. Mas, após refletir, não guardei mágoas de sua atitude. Eu sabia que Madame ainda não poderia saber de nosso amor, primeiro tinham que nascer as duas pestes, digo, as duas crianças. Entendo, que o quê fez foi para meu próprio benefício, queria ele me poupar. Mas, aquela bruxa, Proserpina, havia de pagar-me o sofrimento, ela sim conheceria minha ira.
Após longos meses, confinada, sem a visita de uma sequer viva alma, apenas a da cozinheira que me largava o prato de comida pela pequena fresta da porta, fiquei a confabular meu plano de vingança. Porém, uma certa noite, o Dr., saudoso de minhas carícias, veio a mim com uma ânsia incontrolável, instinto animal. Rasgou-me as roupas, e montou-me lá mesmo, no sótão escuro. Penetrou-me o membro rígido, e disse que se me portasse bem, libertar-me-ia. Seu amor foi tão intenso que durante uma semana fiquei privada dos movimentos, escorria-me sangue por entre as pernas. E durante o coito, ficou ele a sussurrar palavras desordenadas em meus ouvidos. Em um momento, tentou sufocar-me com as mãos, mas não o culpo. Devia estar ele pensando na maldita Proserpina ao enforcar-me. Aquela menina irritante devia estar-lhe perturbando com sua falta de criatividade, e anseios ignóbeis.
Fiquei a espera de minha liberdade, passaram-se anos de espera. O Dr. visitava-me, nós nos amávamos. Minha ira aumentava. Mas, o Dr. dizia-me que Madame ainda não engravidara, por isso demorava a libertar-me daquele sótão imundo.
Certo dia, quando a cozinheira veio entregar-me a sopa, puxei-a pelo pulso, através da abertura da porta. Interroguei-a sobre o que acontecia lá em cima. Ela suplicou-me que a soltasse, seu pavor era tamanho que podia sentir-lhe o suor frio escorrendo-lhe entre axilas, testa e fronte. Ela relutou em responder-me, porém minhas unhas que estavam compridas, devido ao longo tempo confinada, arrancaram-lhe um pedaço da carne. Receosa de um pior acontecimento, contou-me que duas crianças haviam sido expelidas do ventre de Madame. Uma completava 17 anos na primavera, e o outro 13 anos no inverno. Chamavam-se: Filipa e Augusto.
Insisti-lhe mais informações acerca das crianças, mas devido ao meu estado de choque e surpresa a criada já havia resvalado de minhas unhas, saindo rapidamente.
O Dr. mentia-me. Como poderia ele esconder-me os fatos? A traição se consumava sob meus olhos, o gosto amargo da vingança espalhava-se em minha saliva. Por um momento pensei em matar-me, como outrora. É a mim que ele ama, somente a mim, estas crianças e Madame já me causavam problemas demais. Entretanto, para que meus planos fossem concretizados, precisava agir com cautela. Sim, mostrar-me-ia paciente e dócil com o Dr., não lhe negaria o fogo de Vênus, mas eles haveriam de pagar-me com o sangue esta traição.
Fiquei semanas divagando sobre a família feliz que se construía nesta casa, o que aumentava a minha raiva e rancor. Imaginava Dr. embalando-lhes no colo, contando-lhes estórias. Devia até ter soltado Proserpina do quarto e diminuído sua severidade para com os loucos. O casal poderia estar aproximando-se, pois há duas semanas já não vinha procurar-me o Dr. Pois foi exatamente naquele dia, que entra meu amado pela porta, carregando um embrulho em seus braços. Fui em direção a ele com avidez, sentei-me como uma criança no chão a rasgar o pequeno pacote. Ele ficou a fitar-me com seus misteriosos olhos. Dentro do pacote havia um lindo broche de cabelo, todo colorido. Bem, não podia enxergá-lo muito bem, mas parecia ser muito belo e refinado. O Dr. colocou-o em meu cabelo, prendendo-o para cima. Logo após, exigiu-me a recompensa por seus esforços. Desta vez, trazia ele cordas, com as quais amarrou-me os pulsos grudados na cabeça, de bruços, como era de sua preferência. Bateu-me com um pedaço de madeira nas nádegas, ordenando-me que não emitisse um gemido de dor. Após, puxando-me os cabelos, afundou-me o membro nas nádegas. Era sempre nas nádegas. Seu prazer sempre alcançado de formas tão extravagantes tinha-me como mentora. O Dr. aprendera tanto com meus ensinamentos...por isso, não podia deixar que Proserpina resumisse-o a um senhor de família, limitado a uma vida medíocre.
Não era de todo o mal o modo como, comigo, ele lidava, pois eu sabia que ele me amava e um dia me faria sua esposa, então, juntos poderíamos cruzar mares e terras a disseminar a loucura. Mesmo havendo agora aquelas malditas crianças. Talvez ele aguardasse um momento mais propício para nossas peripécias...
Quando se esta encerrada e limitada a quatro paredes, o tempo não urge, ele se arrasta, como que propositalmente, para ver-nos desesperar. E começa a criar-se uma outra realidade dentro de nós. Aguardando a liberdade, criei estórias em minha mente, e minha vida acontecia apenas dentro dela. Já não me preocupava mais com esta aparência exposta aos olhos, apenas com a que estava em minha cabeça. As minhas construções de pensamento sempre rumavam para um mesmo fim: eu sempre me vingava de Madame, e o Dr. admitia seu amor incalculável por mim. Sentia-me renovada e surpreendentemente perturbada, mas não podia ficar a desfrutar deste prazer, só. Não podia ser egoísta e encerrar-me em minha satisfação, precisava levá-la a outros indivíduos.
Passavam-se dez anos. Uma depressão avassaladora contaminava-me a mente, as estórias imaginárias já não me bastavam mais, era o momento de concretizá-las. Fiquei a raciocinar como faria para escapar. Olhando para o lindo broche de cabelo que havia ganhado do Dr., fiquei recordando nossos momentos de intimidade. Para cada cor do broche eu dava um significado para justificar nosso amor. Foi então que analisando o adereço, apercebi-me da utilidade que teria ele. As idéias se fundiam em minha mente rapidamente, parecia que ia explodir.
Esperei a lua substituir o sol e implantar seu breu aos olhos dos seres, peguei meu broche, que agora já representava muito mais que um mimo do Dr., e com a parte que segurava o cabelo, fui forçando a fechadura, pacientemente. Girei para um lado, para outro, porém a fechadura parecia irredutível. Mas, eis que pela minha grande mãe Ísis, que tudo vê e tudo sabe, a porta abriu-se como um toque de mágica. Mal podia acreditar que enfim estava livre. Livre para vingar-me de todos aqueles que causavam a minha chaga.
Discretamente fui subindo as escadas que davam para a sala de jantar. Tudo estava tão escuro que mal podia enxergar onde pisava. Mas parece que os deuses estavam a meu favor, pois ao apalpar os móveis para equilibrar-me, toquei em uma vela. Andei mais um pouco às escuras, chegando à copa. Acendi a vela que agora iluminava meus ímpetos para todo o sempre.
Subi ao quarto de Madame para espiar-lhes o sono, e quem sabe roubar-lhe a vida enquanto dormia tranqüila. Subi pé por pé as enormes escadas. Entrando no quarto, ninguém. Um silêncio ensurdecedor se alastrava pela casa, apenas os ruídos da madeira velha. Senti arrepios. Entretanto, entrei no quarto para fazer uma melhor averiguação. E lá estava ele. Não mais tão radiante quanto outrora, porém mais sedutor: o diário de Madame.
Peguei o caderninho e escondi-me no armário, com a vela a iluminar-me os olhos, fui lendo:


O dia rompeu com um lindo sol a iluminar-me os olhos, uma bela manhã primaveril. Vejo lá fora uma carruagem puxada por dois altivos galopantes. Ela me espera do lado de fora do orfanato. Enfim, rumo para meu castelo encantado. Carrego comigo tantos sonhos e desejos, que é difícil conter os suspiros. Imagino a vida de princesa que me aguarda... Mas devo apreçar-me para não aborrecer o Dr. Vanhuvall com esta minha demora. Nada estragará este lindo dia.

Estamos a caminho. É tão bom sentir esta brisa de primavera, e aspirar o doce aroma das flores do campo. Uma ansiedade começa a contaminar-me os sentidos. Acredito que estamos quase chegando, já vejo lá ao longe um enorme gramado cercado por um doce murinho branco. Vejo cabritinhos, vacas e enormes árvores. Já posso até escutar os passarinhos a cantar em minha janela pela manhã...
A cidade chama-se Vecordarum, fica no interior. Agrada-me muito esta vida no campo. Ainda mais em um belo e enorme castelo. Disse-me a conselheira que ele fora construído há muitos anos por um senhor de muito prestígio, o povo que por ali vivia, chamavam-no de feiticeiro. Também, morava com uma filha que era doente e era tratada pelo feiticeiro, sabe-se lá como. O que se sabe é que os gritos da menina eram ouvidos ao longe. Tais estranhos moradores sumiram com a grande conquista romana, provavelmente foram assassinados pelos guerreiros romanos. Porém, diz a lenda que o pai fora levado para o céu puxado por uma carruagem de fogo, e a menina andava pela terra a disseminar sua perturbação, causando males àqueles a quem se aproximava. E o pai sempre a vigiar-lhe das alturas.
Acho que chegamos, os cavalos acalmam o passo. Preciso ir agora, não quero que me vejam a fazer anotações.

Com muita cordialidade fui recebida pelos criados da Mansão, e antes que pudesse desvendar os mistérios que ali habitavam, fui encaminhada ao meu dormitório, onde o manto azul da noite cobriria e zelaria o meu casamento. Em uma cama coberta por finos lençóis de seda se consumaria nossa união.
Sem que precisasse mover um fio de cabelo, fui banhada, perfumada, descoberta pelos trapos que vestia, sendo envolta por uma branca camisola de seda, pentearam-me os cabelos e cortaram-me as unhas. Agora, sinto-me uma nova mulher, pronta para ser desposada por meu nobre marido, Dr. Vanhruvall. Ele demora a fazer-se presente. As criadas disseram-me que esperasse no quarto, que o Dr. viria fazer-me uma visita noturna.

Desespero-me a recordar a noite que se passou: meu querido esposo não me tocou sequer uma só vez. Entrou no quarto em passos curtos, tirou o casaco, as botas, e deitou-se ao meu lado. Não trocamos palavras, nem carícias. Terá ele repulsa de minha pessoa? Terá ele se decepcionado com minha aparência? Não sei o que acontece de fato, o certo é que me calo e me fecho em minha angústia. Não posso esclarecer o acontecido, pareceria hostil e desrespeitoso de minha parte indagá-lo acerca de sua frigidez para comigo. Acho que devo aceitar suas atitudes. Parece-me que terei que conviver com minha frustração e solidão.


Não podia crer no que lia, que estórias eram essas, Ah meu pai este povo ignorante nada sabe sobre nós! Mas, que felicidade fiquei ao saber que meu amado, o Dr., sempre guardara suas carícias para mim. De fato, Proserpina nunca havia me parecido muito desejável. Um corpo esquálido, um olhar insosso, faltava-lhe uma certa voluptuosidade. É verdade que fazia muito que não a via, mas não haveria ter tido metamorfose espantável.
Continuei a ler as confissões de Madame, que já me pareciam mais interessantes.


Continuam as indiferenças no leito. Já tentei de todas as artimanhas, já usei de todos conselhos de Ovídio para seduzi-lo, mas nada adianta. Ele parece irredutível. Meus esforços têm sido em vão. Meu casamento é uma farsa, um total desastre. Além disso, fico confinada àquele quarto que de início pareceu-me atraente, aconchegante, agora, tem sido um tédio. Também, devo suportar calada suas repentinas mudanças de humor, sua grosseria. Nada acontece como imaginava, meus sonhos transformam-se em pesadelos. Ainda há aquela serva atrevida, acho que se chama Vecordia. Quando estamos a cear fica ela a lançar-lhe olhares maliciosos, por hora questiono-me se não terão eles à noite, enquanto sofro com a solidão deste gélido quarto.


Vêem a maldade desta senhora. Chama-me de atrevida, quando foi ela quem me roubou o amante dos braços. Deveras ter ele a rejeitado, é a mim que sempre desejou, somente eu sabia agradar-lhe os ímpetos. Uma questão ainda me preocupava: como teriam eles dois filhos se nenhuma relação sexual concretizava-se entre as partes. Sem mais divagações, prossegui com a leitura, talvez encontrasse as respostas para meus questionamentos nas linhas aflitas de Madame.


Meu marido chamou-me para ter uma conversa de emergência inadiável. O assunto que ele abordaria já havia sido pensado e repensado por mim, porém não havia chegado à mesma resolução que ele. Queria conversar sobre seus sucessores. Pensei, enfim trataremos de nosso problema. Finalmente, explicar-me-á o seu afastamento, a sua falta de interesse em tocar-me. Porém, disse-me ele em curtas e grossas palavras que eu deveria deitar-me com Josué – o domador de cavalos – este ano, e dali a dois anos novamente. Ato este que seria rigorosamente supervisionado por ele. Antes que pudesse exprimir qualquer reclamação ou palavra, disse-me com voz imponente que o coito seria consumado amanhã à noite – sabia ele que era o período favorável. E, vendo minha expressão de reprovação, disse: “- Não quero sequer uma reclamação, mulher.”
Estou desesperada. Meu marido além de não me amar, ainda entrega-me a um ninguém, um reles domador de cavalos. Eu não o conheço, como perderei minha honra com este criado? Oh, que um fato inesperado venha a acontecer para que se desfaça este ato errôneo de meu marido.


Conspiravam, perante os meus olhos, o nascimento da primeira demoníaca criança. Como pude ser tão cega? Ao menos, o Dr. manteve seu amor fidedigno ao meu quartinho, e sua mirabolante mente permanecia a ferver... Continuemos com esta narrativa tensa, mas reveladora.


Meus pecados devem ter sido de tamanha gravidade, pois as moiras conduzem meu caminho com seguidos martírios.
Sentindo o bafo quente daquele animal domesticado por Dr. Vanhruvall, fui cobrida. Esta criança não poderá ser boa coisa, pois não é fruto de um ato de amor. É uma semente de infelicidade plantada em meu ventre. Já posso sentir-lhe as garras afundando em minhas entranhas, penando em desafeto.
Seu concebimento fora tão metódico. Entra Josué, juntamente com meu frígido marido, em meu quarto. Já estou eu posta na cama, ao meu lado uma cadeira para que o Dr. assista sua manipulação de bonecos, de perto. Ah, ele me enoja! Não foi homem o bastante para possuir-me! Um dia hei de indagá-lo e acusá-lo por essas injúrias!
Vêm Josué encabulado em minha direção, mas demonstra um olhar satisfatório – o que me causa asco. Josué é um animal enorme, rude, os cabelos longos e desajeitados, as mãos grandes e maltratadas, a pele áspera, um cheiro fétido...O Dr.manda-lhe que se sente na cama e consuma o ato rapidamente, e após retire-se, como o combinado anteriormente.
A mim não dirigiu uma palavra de consolo, apenas – ai como me dói recordar a estupidez de meu esposo : “- E tu, abre bem essas pernas mulher, para que não haja erro!” Assim disse ele.
Josué estava nu, o seu enorme membro apontava em minha direção, acusando-me seu desejo. Olhei para o Dr. em uma tentativa de recorrer a sua compaixão. Porém, ele não demonstrou uma expressão de pesar, mantinha-se inflexível. Assim, abri as pernas e fechei os olhos bem apertados, imaginando que talvez sem vê-lo, o sentiria menos. Neste instante, Josué já introduzia seu objeto de fecundação em minha vagina. Senti uma dor inexplicável. Quis gritar. Olhei para meu esposo, e então vi algo que desde a nossa união jamais havia visto: com o olhar baixo, escorria-lhe do olho direito uma lágrima. Sim, chorava ele. Talvez, ele me amasse calado, mas tivesse problemas em revelar seus sentimentos. Fiquei tão perplexa com a atitude inesperada de meu marido, que nem notei o homem que se sacudia em cima de mim. Quando me recordei do ato que se sucedia, Josué já havia acabado seu serviço. Puxava as calças para cima e retirava-se calado, com uma expressão de alívio e exaustão no rosto. Como se tivesse encontrado uma certa paz dentro de seu perturbado ser, diferentemente do Dr. que parecia ainda mais tenso que outrora, talvez estivesse arrependido.

Para onde terão ido os meus sonhos? Um ser humano cresce em meu ventre, para descobrir o mundo, e eu como sua mãe, deveria orientá-lo, guiá-lo nesta complexa viagem, que por alguns momentos parece-nos eterna, mas basta que olhemos para o lado e a veremos chegar ao seu fim. Entretanto, levá-lo a conhecer este universo de sensações não me será possível, pois nem eu mesma o conheço. A solidão em que vivo aliena-me para uma realidade que não acontece de fato. As palavras que escrevo são as únicas verdades que conheço. Nunca conheci o amor. Dizem que a maternidade nos torna mais humanos e maduros. Acho que já posso entender o que querem dizer com isso, mas sei que não posso responsabilizar-me pela felicidade de uma vida. A minha sempre foi tão frustrante, sempre fui tão mesquinha. Cresci acreditando que um dia as coisas bonitas e plenas fariam parte de meu viver, mas a verdade é que cada dia que se passa estas coisas parecem estar mais distantes de meu alcance.
Meu filho tão inocente virá ao mundo já sendo vítima de um desamor. Será o filho de uma traição consentida, de palavras não-ditas, talvez, de um sentimento incompreendido.


Não se enganem com estas palavras melancólicas e desiludidas. Madame sempre soube que nada do que almejava conseguiria. Sabia ela que estava destinada a um viver inócuo, mais um não viver, desde o primeiro momento que conheceu seu “polido” senhor. Que, aliás, já não lhe parece mais tão polido. Porém, há uma justificativa para isso, pois nesta tragédia já existia uma senhora que apenas espera ser coroada para reinar. Pobre de Josué, apenas um pedaço de carne para essa nobre Madame. Por certo que é repulsivo, mas é um ser humano, por Hórus! Não deveria ela tê-lo profanado como o fez. Afinal, ela jamais possuiria o Dr.. Sua obsessão era tamanha que já começava a ver amor onde não havia. As lágrimas que se desprenderam de seu olho eram falsas, dissimuladas, típicas de um manipulador. O Dr. jamais derramaria lágrimas de amor.


Começo a sentir dores terríveis. O bebê deve ser enorme. Também, sinto-me muito só, nunca recebo uma visita durante o dia, e ontem à noite não veio meu esposo deitar-se comigo. Estará ele a divertir-se com a criada? Poderia ele respeitar-me, ao menos, neste momento frágil pelo qual passo. Por instantes, tenho vontade de sair trotando em um cavalo para um lugar qualquer. Sentir por pelo menos uma vez o gosto da liberdade. As situações sempre foram indiferentes aos meus anseios, acho que perdi tempo demais sonhando e esqueci-me de simplesmente viver. Viver à margem acaba sendo mais fácil do que tentar viver socialmente, ainda mais quando só se conhece a verdade periférica.


Sim estava ele comigo, Madame. A solidão deve acontecer para alguns para que outros encontrem a satisfação. Também estive eu só. Aliás, se não fosse pelas visitas casuais do Dr. eu seria ainda mais só. Mas, ela é apenas uma menina mimada, cercada por criadas e luxos. Eu nunca tive nada, quando muito a roupa do corpo. Não, não há de haver pesar. Essas recordações serão enterradas com meu passado, quando me juntar ao meu amado e ser reconhecido meu talento de intérprete.
As palavras de Madame erguem para mim um muro de compreensão. Já posso entender mais nitidamente sua patologia: sonhava de mais. Sim, sonhou tanto que um dia acordou e viu que seus bosques não eram tão verdes, que suas rosas não exalavam perfume, que o amor não era tão doce e encantador. Sonhou tanto a pobre menina, que ao acordar despencou de uma torre à margem das nuvens para além dos limites do compacto solo.


Após um parto complicado e de intermináveis e dolorosas contrações, nasce meu primeiro bebê. É uma linda menina, de amendoados olhos pretos. Chegou junto com a primavera. Será ela doce como um jasmim? Simpática e esplendorosa como um girassol? Ah, não sei, só o tempo me dirá. Talvez, venha ela para findar com minha solidão. Além disso, meu marido tem tido um comportamento que me perturba. Ao expelir à criança, não me repreendeu os gemidos de dor, segurando-me a mão. Lançou-me um olhar terno ao ver-me dar de mamar. A propósito, o nome da criança é Filipa. Parece que com o advento desta os ventos tomam novos rumos, e desta vez estão a meu favor.


Proserpina, não te iludas com as aparências. Os fatos ainda não te são translúcidos. Não sabes que toda a força dos ventos soprará a meu favor e contento. É do sótão que ressurjo para pôr-te nas trevas de Hades. Já disse o oráculo que nasceste para lá ficar. Pertences ao sofrimento, a melancolia. E contigo não levarás meu amado! Que se ele não me pertence, a ti também não irá! Eu te amaldiçôo com a sapiência e revelação que a mim é concedida.


Parece que meu casamento faz progressos. Entretanto, aproxima-se o dia de meu martírio. Em duas semanas, completa Filipa dois anos. E como já determinou meu esposo, há dois anos atrás, nesse dia consumar-se-á meu segundo bebê. Não terá ele amolecido aquele coração de gelo? O fato é que apesar de mostrar-se mais atencioso, e permitir-me que vá brincar com Filipa no jardim de inverno, não altera nossa situação no leito. Pois, ele ainda não me toca. Sinto um tremor e um fogo entre as pernas, quando no meio da noite sem que ele perceba toca-me, o seu pé em minha coxa, ou em qualquer parte de meu corpo. Deveria eu possuí-lo em meus braços, e sufocá-lo de tantos beijos! Mas, não tenho coragem para fazê-lo, talvez, seja eu tão covarde quanto ele.
Os dias correm, e pela primeira vez para mim o tempo urge. Minha angústia aumenta a cada dia. O que será que reserva desta vez para mim meu esposo?

A criada teve hoje ataques nervosos. Talvez, tenha ela visto o lindo bebê que agora habita a casa. Por certo, está enciumada do Dr. Ao menos, desta vez prendeu-a no sótão. E graças aos seus ataques, e novos pacientes que chegaram nesta primavera à nossa morada, tem o Dr. mantido-se ocupado. Tão atarefado está ele que se esquecera do combinado. Talvez, tenha até desistido. Esteja já de todo contente com Filipa.
Filipa sim me preocupa. Não é um bebê muito comum. Às vezes, fico a olhá-la. Seu olhar não tem meiguice, e chega a arrepiar-me os pêlos do corpo. Seu olhar ao passo que é vazio, invade-me toda a alma, como se quisesse transpor-me a carne, e ler-me os pensamentos.

Apesar do tumulto causado pelos novos doentes, uma certa tranqüilidade era mantida na casa. Entretanto, chegado o outono, alastra-se a minha desgraça. Rompeu a porta do quarto meu esposo, trazendo consigo uma criada, a qual arrancou-me dos braços Filipa. Meu pavor com seu ato era tamanho que nenhuma palavra ou som foi por mim emitido. E, assim ordenou-me: “- Prepara-te, pois, esta noite, consumarás meu segundo herdeiro! Filipa permanecerá aos cuidados da criada, até que findes com ato.”
Novamente, a aflição instalava-se em meu coração. Conseguiria meu esposo ser traído perante seus olhos e sob sua própria ordem pela segunda vez? Ás vezes, pergunto-me se será ele um ser humano de carne, osso, e vertentes de sangue quente correndo-lhe pelo corpo.


Proserpina tua desgraça ainda é pouca. Não podes imaginar o que te aguarda. Será de minha façanha ver teu último suspiro de vida. Estas mãos que agora folheiam tuas verdades, farão justiça. Tua maldade não se disseminará entre os mortais, mas permanecerás recolhida no lugar que a ti cabe, e transcenderás os tempos graças a meus atos de justiça.


A covardia de meu marido progride ao passo que meus medos se diluem em atos de desespero. Consumada a substituição da Lua pelo Sol, invadem meu quarto Josué e uma criada. Meus olhos procuram por todos os cantos a figura de meu esposo, um hipócrita, mas meu único alento. As portas fecham-se. A criada percebe um desespero invadir-me a alma. E, assim diz, como lhe fora ordenado: “- Senhora Proserpina, pediu-me o Dr, Vanhruvall que vigiasse o ... o ... o ato. Sabes a que me refiro. Acalma-te que em breve tudo estará acabado!” Após dirigiu-se a Josué, e disse: “- Vamos, homem! Não tarda de findar com o sofrimento da Sra.”
Porém, suas palavras de nada adiantaram para consolo. Vinha Josué com aquele membro rígido...e eu procurando algo que me distraísse, um homem que mesmo calado demonstrasse um sentimento...Não, não pude conter-me, gritei com o ímpeto de que ele me ouvisse e agonizasse: “- Que belo exemplo és para tua filha! Covarde! Não suporta ver tua mulher com um outro, pela segunda vez! Entretanto, ordenas e prossegues com isso! Como podes continuar com isto e suportar olhar nos olhos de tua filha e nos meus!Covarde!”
As lágrimas jorravam de meus olhos. O homem que me cobria era indiferente ao meu desespero, tal qual a criada. Ficavam silentes. Era como se ninguém pudesse ouvir meus berros. Mas, podia sentir a angústia em que se consumia meu esposo. Podia sentir-lhe a presença atrás da porta, a arrancar-se os cabelos, remoer-se em gemidos contidos. Sim, sofreremos juntos o que nos reserva o destino.


Vejam, começa a revelar-se a maldade desta mulher. Quer ela arrastar consigo meu amado para os caminhos do sofrimento. Jamais teria meu Dr. escandalizado-se com suas melancólicas palavras. Imaginem um homem que vive cercado, a todo o momento, pelos piores loucos, suicidas, esquizofrênicos, violentos, meretrizes, indigentes, assassinos...ora, irá ele sofrer com uma louca entediante destas, por favor. Proserpina, tu és má sim, mas meu amado tem minha proteção. Jamais poderás transpô-lo com tuas maléficas palavras. Imaginem meu curandeiro, salvador, um covarde. Para mim ele é o mais forte e bravo entre troianos e gregos, entre Enéias e Odisseu.


Nada mais parece importar-me. Desisti de entender os mistérios de Vanhruvall. Tenho sido tão relapsa com meus filhos, que os entreguei aos cuidados das criadas. Sinto uma loucura apossar-se de minha mente. Nada mais tem sentido. Faço pequeninos cortes em minha carne para ver o sangue resvalar pela pele. As lágrimas secaram-se todas. Começo a enojar-me destas anotações, elas já não me fazem mais sentido. Abandonarei-as neste instante!


Oh, Proserpina, me privaras desta leitura emocionante? Que mulher fraca é essa, não imaginava o quão mimada pudesse ser. Frente à pequenos sofrimentos entrega-se ao desespero. Mas, vi que não pôde ela manter a palavra. Pois, este caderno era sua única companhia, passada a depressão momentânea, retornou a ele avidamente.


Meu querido diário, como estou saudosa de ti. Só a ti confiei meus desejos, minhas angústias, minhas loucuras. Como é bom dissipar-se em palavras. Escrevo porque não há mais nada a fazer, foi-se o pranto, foi-se a alegria. Agora se instala entre nós a loucura. Revela-se em pequenas ações em cada um de nós, demonstrando ser ela o último estágio para todos os seres. Já posso ver em Augusto, meu segundo filho, assim como vi em Filipa, a semente da loucura germinar em sua mente. Filipa completa em três dias cinco anos, e Augusto fará dois anos no inverno. Vanhruvall afastou-se ainda mais. Desaparece por semanas, e após volta, mas não me dirige sequer um cumprimento. Apresenta severidade em disciplinar os filhos, mas eles são adversos aos seus mandos e desmandos, sendo, por isso, rigidamente punidos. Filipa já parece uma adulta. Não brinca mais. Vive a dar ordens nos criados da casa, os quais parecem temê-la. Quando não são atendidos seus desejos, até eu a temo, seus olhos tomam uma coloração diferente, e as veias de seu pescoço parecem que vão explodir-me no rosto. Augusto também é comandado pela irmã, mas apresenta certas restrições às atividades que ela lhe impõe. Apesar de pequeno, tem um certo respeito de Filipa, um respeito que nem o pai com duras lições conseguiu conquistar nela.


As demoníacas crianças já apresentam débil psique, tal qual a mãe. Demonstrar-se-ão pródigas no ato da loucura, que diferentemente da mãe, somente agora se apercebe de sua debilidade mental.
Não quero antecipar-lhes os fatos. Sinto que os acontecimentos em breve mostrar-se-ão reveladores até mesmo para esta que vos cede os olhos para que vejam aquilo que se passou. Sim, neste instante, longe de meus olhos, as obras de meu pai sucedem-se. E começo a prever o tremor que não só á vós surpreenderá, mas também a esta humilde profetisa.


As sementes, em um fértil solo, germinavam, superando algumas dificuldades desenvolviam-se em frutos, e chegada a primavera desabrochavam-se nas mais diferentes flores. Tal qual as flores, o seres desta casa, começavam a determinar-se, evidenciando-se em diferentes modos de agir, pensar, ou até mesmo, de calar-se.
Filipa continua a me preocupar. Sua sexualidade começa a aflorar, e seus ímpetos dificilmente contidos são percebidos pelos criados da casa. Da janela de meu quarto, vejo-a a insinuar-se no jardim para Pietro – o jardineiro. Seus olhos e corpo exalam malícia, e Pietro começa a corresponder-lhe as seduções, apesar das rígidas restrições impostas pelo Dr.. Parece que o perigo de serem descobertos e censurados aumenta-lhes a atração entre os corpos. Mas, isso considero de certa normalidade para a idade da menina – 13 anos. Porém, Filipa parece não se satisfazer com o jardineiro, pois começo a perceber sua ânsia aos carinhos de Vanhruvall . Senta-se em seu colo, trocam beijos e calorosos abraços. Durante a ceia, trocam sorrisos de apaixonados. E, ao passo que minha beleza esvai-se atribuída ao tempo e ao confinamento, a menina desabrocha. Filipa é enérgica, envolvente. Sinto uma inveja apossar-se de meu ser quando vejo que Filipa obtém de meu esposo tudo aquilo que eu sempre desejei. Eu só queria ser amada. E esse amor é dado a uma menina, que nem mesmo é sua filha.

Augusto é diferente da irmã, tem compostura. Porém, é freqüentemente repreendido pelo Dr., que não suporta ver que o filho começa a demonstrar uma beleza e esperteza que não obtém. Augusto é enamorado dos livros, passa seus dias na biblioteca, a devorar tratados históricos, conhecedor da literatura e da Ciência. Na ceia, vejo-os a discutir teorias, e meu filho sempre defende com mais ardor suas concepções, deixando Vanhruvall constrangido perante seus fracos embasamentos na argumentação. O Dr. não demonstra talento na arte da oratória, no que o menino tem forte domínio por sua vasta leitura. De uns tempos para cá, Vanhruvall já não dirige mais palavras a Augusto, começa a ser-lhe indiferente, como a mim. O que tem criado um laço entre nós.

Por momentos, arrependo-me de ter parido essas crianças. Sofri com o seu concebimento, penei nove meses com cada um, suportando dores nas costas. Meu coração foi dilacerado duas vezes por meu esposo para que viessem eles conhecer o mundo. Agora, tudo me parece não ter um motivo de ser, pois estou novamente abandonada por todos. Meu filho substitui-me por livros, minha filha por caros vestidos, e meu esposo por minha própria filha.
Outro dia, passava pelo quarto de Augusto e ouvi murmúrios e risadinhas. Filipa sussurrava palavras nos ouvidos de Augusto, e ele se ria. Parece que tramam uma conspiração, mas ainda não sei do que se trata. Durante a ceia, vejo Filipa a provocar o Dr., e após troca olhares dissimulados com Augusto, provocando o riso neste. Espanta-me a união destas crianças. Pobre Dr. Vanhruvall, acredita que é centro das atenções de Filipa, mas não passa de motivo de chacota para os jovens. Se tivesse ele me amado, tudo seria diferente. Agora, agonizamos todos em nossos universos, tão sós...exceto os irmãos que trocam confissões, bastando um ao outro.


As crianças são tão mais inocentes do que imagina Proserpina, e aí esta a sua maldade. Fica a fazer suposições maldosas dessas mentes conturbadas, são apenas duas pequenas vítimas do meio em que estão inseridos. A loucura havia de contaminá-los desde a raiz. Começavam as peripécias dos filhos da loucura, minha cara Proserpina. Tu também nada sabias, mas em breve verias o que te reservavam as moiras, que teciam teu destino cuidando para que nem um momento de aflição te escapasse.


Sinto que estou sendo consumida por uma inveja fatal. As carícias entre meu esposo e minha filha tornam-se mais calorosas ao passo que essa se desenvolve fisicamente. As conseqüências hão de ser trágicas. Oh deuses olímpicos, intercedam por mim. Se essa inveja não se dissipar, minhas atitudes não serão medidas. Salve-nos enquanto ainda há tempo. Minha alma dói, e meu corpo está fragilizado.


Ninguém intercederá por ti, Proserpina. Podem acreditar no que premedito. Em breve estará essa mulher a acender a chama da ira, do ódio, a queimar no fogo dos Infernos, a nadar nas águas do Aqueronte. Vamos Proserpina, mostre-nos de que é capaz, até onde a tua fé na loucura levar-te-á. Digam-me o que não faz uma mulher traída, com o coração dilacerado? Lembrem Medéia. Mas essa não será como Medéia, será ainda pior. Sim, agora vêem a gravidade do que ocorre. Verão o que uma mente conturbada pode cometer, mas que não seja a loucura uma desculpa para seus atos de maldade.


Invoco Vênus, a deusa do amor, para que possa usar do artifício da sedução. Clamo por Baco, o deus do êxtase e do entusiasmo, para que nos contamine com suas orgias. Oh, Fúrias ergam-se de seus leitos para dar-me ódio o suficiente para o ato que cometerei. Que venha por mim também a Discórdia, com seus cabelos formados de serpentes, presas entre si por uma fita sangrenta. Vingar-me-ei por todos aqueles que vagam nos Infernos, por serem vítimas de um amor insatisfeito e que a própria morte não libertara do sofrimento. Tu, Dido, que duplamente sofreste, dois amores te foram levados, o destino traiu-te e impeliu-te brutalmente para a morte. Mas, é chegado o dia da vingança. Não tarda a noite a chegar, é hora de exporem-se as iras, os descontentos, os desafetos. Irei até o fundo do poço, expelirei até a última gota de afeto que habita minha alma.

A noite inspira-me, estou envolta com seu manto a espera da vítima. Sim ,minha vítima, meu filho. Chamo-o para visitar-me à noite, para que celebremos a chegada do inverno. Ofereço-lhe vinho. A Discórdia, as Fúrias e os habitantes dos Infernos já se fazem presente em meu leito. Aguardo-o para que possa consumar o ato de minha vingança. E quando aqui chegar, embriagarei-o com o néctar de Baco, para que se liberte em êxtase e entusiasmo. Após, invocarei Vênus, para que com suas artimanhas do amor ajude-me a seduzi-lo. Sim, seduzirei meu filho. E na cama que descansa meu marido consumaremos o ato da traição, a espera de que entre ele pela porta e agonize pela terceira vez, vendo com seus próprios olhos a traição. Vingarei-me dele e de minha dissimulada filha.


Não queira Proserpina esquecer-te daquilo que te inspira. Aquilo que te faz ver e sentir além do real, a loucura. Somente ela poderia libertar-te, e somente ela libertará teus filhos, mas não queira eu tirar o demérito dos deuses Infernais, que dar-te-ão forças para praticar a vingança. Porém, é a loucura que causa a explosão das sensações, assim como a energia que provocou a colisão dos átomos para a criação do Universo.


O menino aproximou-se com timidez. Veio ao meu encontro como se soubesse o que preparava para nós. Acho que ele sempre soube que este momento chegaria, que os nossos destinos se cruzariam para um fim fatal.
Apresentei-lhe Baco, e rapidamente o menino envolveu-se em seus encantos. A situação estava armada. Em uma camisola branca surgi de Vênus como uma aparição aos inocentes olhos de Augusto. Estava intimidado, mas com minhas carícias, não custou para que o menino de treze anos sentisse a sexualidade explodir-lhe dentro das calças. Toquei-o, e ele já liberto regozijava-se em meus dedos. Ensinei-lhe como montar uma fêmea, e Augusto contagiado obedeceu-me. E enquanto montava-me o menino avidamente, como se um excesso de loucura o orientasse, rompe a porta de meu quarto meu querido esposo.
Eu deleitava-me com a expressão de pavor e nojo de Vanhruvall. O esperto e sedutor Dr. era traído pela terceira vez. E eu gritava-lhe tudo o quanto havia guardado nestes longos anos, enquanto meu filho chegava a exaustão e sentia o prazer da carne.
“- Julgavas-te esperto meu esposo? Achavas tu que poderia trair-me com minha própria filha? Compreendes o que teu desamor causou? Olha para teu filho, e diz a ele que tu não és o pai! Diga a ele o quão covarde tu és! Porquê meu esposo fizestes isto comigo? Isso é culpa tua! Olha para mim Vanhruvall!”
Porém, não suportou ele ouvir as verdades. Fugiu porta afora como um covarde. Ouvi um estrondo. Corri ao meu Augusto. E da janela o vi. Quis acudi-lo, mas já estava seu corpo atirado a três andares, estirado entre as folhagens.


Agora aqui estou. Julgar-me-ão vós por mandar essa maléfica mulher de volta a Hades? Façam vosso julgamento, pois os fatos estão expostos aos vossos olhos, e o circo se alastra.
Esperem! Este diário esconde-nos algo. Eis que vejo nas últimas páginas algumas anotações desconhecidas. Passo a ficar aflita. Não demoremos a apurar a verdade, vejamos o que nos omite Proserpina.


Que tragédia fui cometer! Oh, deuses infernais venham buscar-me pois não sou digna de meus entes. Disseminei a morte. E ele me amava, sim me amava ele. Leio um bilhete que me deixou meu querido esposo:
“Proserpina, desculpe-me por que falhei com todos vós. Deveria ter-lhes dito antes que minha mente sofre de algum mau, desde que nesta casa cheguei, omitiu-se minha paz de espírito. Eu sei que sou um perverso. Nem sempre assim o fui, só agora posso apercerber-me da decadência do ser humano. Não te iludas com castelos e adereços banhados de ouro, estes seres possuidores de toda a riqueza não estão salvos da loucura que se alastra pelo mundo. E os pobres que encerrei no sótão com atos perversos são apenas humanos que agem diferentemente desta sociedade falida implantada e regulada por nós mesmos. Quem me dirá agora e esclacer-me-á o que vem a ser a loucura? Quem esta apto a acreditar que pode salvar mentes e almas? Somos os próprios criadores do conceito de loucura, e, veja, que contraditório, nós mesmos procuramos, agora, exterminá-la com atitudes e antídotos absurdos. Pergunto, quem é o real louco? Eu fui contaminado por uma sensação obstante de qualquer determinação coerente, e só conseguia obter excitação praticando atos de crueldade em outras pessoas. E eu jamais poderia machucar-lhe, pois meu amor por ti sempre foi grande demais. Com medo de provocar-lhe dor física, acabei por machucar-lhe a alma. Eu só gostaria que soubesse que eu a amei desde o primeiro momento em que a vi. Desculpe, meu amor, por tudo. Por todos os momentos de angústia que lhe causei, por tê-la impelido a atos que não eram de tua natureza. Se pudesse voltar atrás jamais a teria trazido para este antro de hipocrisia. És um anjo tão inocente. Sinto muito, sei que nenhuma de minhas palavras será capaz de diminuir-lhe a dor, mas é que não poderia morrer sem que tu soubesses que eu sempre te amei.”
Não há mais o que fazer, eu sempre soube que a loucura haveria de consumir-nos, a todos nós. Agora, jaz o corpo de meu inocente filho entre as flores, minha filha sumida a galope com Pietro – o jardineiro, e o Dr. Vanhruvall, meu esposo, meu amado, morto. Hei de seguir meu tortuoso caminho. Venha Hades, abrace-me com teus braços, e me confine ao mundo dos mortos, pois de lá nunca deveria ter eu saído.


Rompo o armário, corro ao escritório tentando superar-me os movimentos curtos das fracas pernas. Não pode estar Proserpina a falar a verdade. Chegarei ao escritório, e lá estará ele a esperar-me, com um sorriso nos lábios e ardente de desejo. Não era ele sádico, agia como tal porque seu amor era intenso demais para carícias dóceis e de irritante amabilidade.

Porque vejo o belo corpo de meu amado, suspenso a uma corda e imóvel? Esvai-se sua vida. Que triste sou eu. Talvez, esteja a pregar-me uma peça? Sacudo-lhe o corpo, e parece-me que não atende aos meus chamados.
Não, não, não! Meu amado está morto! Porque me abandonaste? Onde fostes sem mim? Estas junto de Proserpina? Eu sei que tu não a amavas! Ou tu a amavas? Não, já sei, ela é a executora de tamanho crime, forçou-lhe a antecipar a morte! Sim, é isso.

Não creio nos meus olhos...
Meu amado, acorda! Eu estou aqui! É Vecordia!
Onde estás Proserpina? Eu hei de cassar-te por todo o inferno se possível, mas tu pagarás por teus atos! Não ficarás impune!

Que luz é essa que invade a janela como um raio? Se és tu Proserpina, prepara-te pois não te pouparei de minha ira.

Quem és tu? O que queres? Não posso enxergar-te essa luz ofusca-me a visão.

Meu pai. És tu?

Meu pai porque me confiaste a esta sorte de errante? Dissemino a loucura em vossas casas, e então é me selado este destino! Meu pai, estou tão cansada. Minha alma está aflita e descontente, deixa-me repousar os ânimos.
Eis que te vejo! Tu hás de inspirar-me uma recuperação a estas injúrias reservadas a mim.
Oh, Júpiter vieste para levar-me contigo! Viste do Olimpo minha representação? Fui magnânima não? Meu talento sempre foi inconfundível. Vejais vós o que me reservava meu onipotente pai. Vou-me para o Olimpo. Em Atenas e Roma reconhecem-me como álibi de lindas tragédias gregas. Medéia sentiu nos punhos minha influência! Diana o sabe ! Critiquem-me, então, a loucura. Mas, não se esqueçam que fui criada por vós. Como uma doença, determinaram-me e conceituaram-me, e agora ávidos e desesperados procuram antídotos para mim. Porém enquanto a ambição e hipocrisia reinar em vosso mundo, jamais se verão livres de mim. Sim, e para vós, sinto muito, mas já desprendi tempo de mais convosco, reflitam e se tiverem coragem o suficiente, encarem-me frente a frente. Agora, devo despedir-me e dizer-lhes que:
O momento não é propício para contatos intensos. Sejamos, pois atores de uma só cena. Que se abram as cortinas e entre o palhaço, e consigo traga de volta o riso!

















Almas Penadas

Dizem que o fim justifica os meios, mas para Hebert o meio justificava seu fim. Os românticos que morrem por suas amadas, e sofrem quase que irracionalmente, lembram-me Hebert, que teve esse mesmo fatal e bucólico destino: encaminhou-se para as ruínas por um capricho de um desconhecido.
Hebert não era escritor renomado, porém lhe bastavam seus romances piegas, de pouca criatividade, superficiais. Sentia um gozo transcendente ao findar as longas narrativas que ao menos lhe rendiam o pão de cada dia e uma morada considerável. Não era um homem de extrema felicidade, mas sobrevivia, tinha objetivos, alimentava-se de amores platônicos, seus sentimentos resumiam-se aos de seus personagens, vivia em seu mundo de literatura medíocre.
Entretanto, aquela mulher inexplicavelmente bela, daria um fim àquela sua rotina, ao seu dia-a-dia contido e de pouca ousadia. Ela preencheria locais jamais habitados em sua alma, terminantemente, arruinando com seus dias de romancista. Hebert já não via mais motivos para compensar sua carência emocional em narrativas longas, densas e entediantes. Agora, encontrava-se no ápice daquilo que chamamos “branco de escritor”, porém, finalmente, vivia intensamente, obstante das teorias epicuristas com que sempre baseara seu cotidiano. Este amor levou-o a desgraça, o infeliz ria do nada, passeava de mãos dadas na praça, fumava baseado. Edi, a nomeação do caos na vida literária de Hebert, foi-se tão fácil como veio.
Edi era fascinante, gostava de arte, adorava ir a museus, e tinha


mãos de artista, desenhava traços desdenhosamente, com uma facilidade impressionante. Nada a aborrecia, e logo de início amou Hebert devotamente. Despertando neste homem sentimentos exacerbados, dos quais ele jamais havia ousado ter para si, apenas os projetava nos protagonistas de seus romances.
Entretanto, uma rua deserta, em uma noite enorme, quando Edi rumava à casa de seu amante Hebert, um homem cruzara seu caminho, sua inocência fora tomada, era seu último suspiro de vida, o fim de sua trajetória, três facadas no peito.
Hebert aos poucos foi perdendo tudo aquilo que conquistara, nem da fala, que com muito custo sua mãe lhe ensinara, utilizava, resmungava, sons mudos. Já não tinha mais o amor, e nem inspiração para prosseguir com seus escritos, tornava-se um boêmio, entregue aos caprichos do luar, ao cuidado das estrelas e dos bêbados que lhe faziam companhia. Obviamente, perdera as poucas amizades que ainda cultivava. Sua única distração era embriagar-se com alguma garrafa de whisky ou cachaça que a muito custo barganhava em um bar qualquer.
Só não havia cometido suicídio, na noite que ficara sabendo da morte de Edi, porque não tinha nem coragem para findar com seu sofrimento. Era um covarde, sem nenhuma qualidade, exceto de embebedar-se e mutilar-se. Pois, apesar de não ter coragem para cortar os pulsos em um golpe mortal ou atirar-se na frente de um ônibus ou de cima de algum prédio, tinha o hábito de fazer pequenos cortes em sua carne, gostava de ver o sangue resvalar por entre seus tecidos, e de lambê-lo na pele, deleitando do gosto salgado que sentia no ápice da língua. Já não se deprimia com a falta de amor que presenciava em seus intermináveis dias, tornara-se amargo, descrente nas profecias do coração. Não queria mais qualquer relação interpessoal. Estava só, completamente só, e não via motivos para sorrir, o fogo do amor o havia despido, e agora estava completamente nu, nu de qualquer sentimento de afeto.
Porém, depois de tanto tempo sem uma emoção que lhe habitasse o peito, o inesperado. Na leveza do caminhar, cabelos soltos a dançar com o soprar do vento, a mesma aparência de quando pela primeira vez a viu – não como da última vez, pele roxa e fria, rosto inexpressivo, não – agora, ela sorria, sorria para ele...
Era sua amada Edi que havia voltado para ele, do outro lado da calçada acenava, chamando-o para junto dela. Os olhos de Hebert pareciam retomar o brilho de outrora, até um sorriso insosso começava a brotar no canto da boca.
Relutou. Não podia crer que ela voltara depois de lhe deixar com o coração dilacerado, dissipado pelas calçadas da cidade o seu afeto. Ainda assim, nutrindo uma certa desconfiança, Hebert foi ao chamado de sua amada. Devido ao elevado nível alcoólico em que se encontrava, com dificuldade, levantou-se, esforçando-se para se equilibrar nas finas pernas. Deu um, dois, três passos... agora só precisava atravessar a rua, para, finalmente, tocar os braços nus de Edi, a pele macia e cheirosa.
Tão perto, mas tão longe para Hebert, um ônibus. A colisão, uma gritaria desmesurada, uma multidão de pessoas ao seu redor. Alguém diz:
- O infeliz está morto.
Em meio a toda aquela desgraça, as entranhas de Hebert semi-expostas, o pavor no olhar das pessoas. E, novamente o amor havia arrebatado o amante. Pela segunda vez, Edi abandonara Hebert, pois, novamente, estava só, atirado na calçada. Traído pelas artimanhas do coração. E os romances levavam mais um corpo sedento, mais uma alma penosa.
Conseguira, o romance, por à prova a infelicidade de seres que entre seres não conseguem fugir da proeza do amar, são apenas almas penadas vagando a esmo pelos céus cinzentos, envoltos por uma neblina tênue de amargura e solidão.




Um pacto com o demônio


Um pacto com o demônio

Chamo-me Molina. Sou professora de português, estudo diariamente e devotamente a gramática. Admito, leciono sem o mínimo tesão. Algumas vezes, inclusive, até surpreendo-me quando me deparo com um aluno percebendo as palavras que digo. É, acostumei-me à indiferença dos discentes, vou à escola e exalo regras, normas, toda a sistemática e a sintaxe, apenas no ímpeto de cumprir com meu dever, e suprir minhas necessidades como uma cidadã integrante de um sistema capitalista.
Entro na sala de aula pontualmente, e também assim o faço quando esta finda. Não cultivo qualquer relação interpessoal com aquelas “criaturinhas” estranhas, os alunos, nem os repreendo, e tampouco os cativo. Essa é minha labuta.
No restante do dia tenho Tiegue para me entreter. Conto os segundos para finalmente desfrutar de sua companhia, e quando estamos juntos parece que o tempo dissipa-se rapidamente em pequeninos momentos de exaltação. Sinto que sem ele nada sou. A ponto de que quando me deparo com meu semblante em um espelho, já não sou apenas Molina, sou uma fusão de dois seres, Molina e Tiegue, que se confundem como dois líquidos completamente miscíveis.
Entendam a grandiosidade de meu amor, para que não me julguem vós leitores pelo ato indigno que cometi. Compreendam que para mim não existe nada após Tiegue, não há fervor naquilo que vejo, no que toco, no que faço, apenas no que sinto, no que sinto por Tiegue. Sim, apesar de sua morte ainda o amo. Até mesmo encontrando-me neste local imundo e devasso, ainda nutro todo o afeto que se iniciou outrora e que progredi vorazmente em meu amargurado peito.
Sei que devo contar-lhes o ato de sua morte, mas nem mesmo eu o sei. Em uma noite chuvosa e de ventos provenientes do sul, ele se foi. Foi-se e jamais voltou.
Pois vejais vós criaturas insanamente amantes da literatura, que naquele dia após o seu sumiço inesperado, tudo estava acabado para mim, por isso supliquei para quem quisesse ouvir-me e socorrer-me:
- Daria tudo que tenho para ter ao menos mais um minuto ao lado de Tiegue. Se pudesse mais uma vez tocar-lhe a pele nua, daria todos meus impagáveis pertences. Meu amado Tiegue foi-se tão novo e deixou-me sozinha e amargurada neste impiedoso mundo. Para, apenas, mais uma vez presenciar seu sorriso terno, venderia minha alma ao Diabo!
Pois assim foi. Vós acreditais que apelei para o Diabo? Pois por certo que sim, Deus jamais ouviu minhas preces, acredito que estava ocupado demais com suas tenras ovelhinhas... Assim, após minha fúnebre invocação, eis que das profundezas do Inferno, para a minha surpresa, surge um ser de aparência transfigurada a afirmar eloqüentemente: - Eu aceito!
Eu, que desde a morte de Tiegue havia adquirido extrema frieza, nem me exaltei ao ver tal abominável figura. Admito, que como uma descrente em outros planos e universos de existência, desconfiei da identidade de tal ser, porém no meu âmago, senti aproximar-se a oportunidade de rever meu mui amado Tiegue. Para certificar-me de que realmente se tratava do Deus Chifrudo, olhei bem para aquela criatura deformada e indiscutivelmente estranha e disse em um tom imponente: - Então, com o poder que lhe é conferido, traga-me Tiegue de volta!
Aquela figura, a qual não se sabia onde começava a boca e terminava os membros, de repente dirigiu a palavra a mim. Senti um arrepio subir-me da pontinha do dedão até o último fio de cabelo de minha cabeça. Porém, até que sua voz era alentadora: - Acalme-se, ser inferior! Primeiro, assines este termo de compromisso conferindo a mim tua alma.
Eu que sempre fui pensativa demais, desta vez, assinei com rapidez os papéis. Ele parecia ser um sujeito confiável, afinal seu português era impecável. Além disso, a expectativa de poder tocar novamente os lábios de Tiegue era enorme. Ansiosa, então, disse-lhe, apesar de um pouco mais reconfortada, ainda com a voz imponente :
- Não te demore, Satanás! E devolva-me meu marido!
Desta vez, sem dúvida, vós não crereis em minhas palavras, pois o que me aconteceu foi digno de uma grande piada. Assim foi, para a minha decepção e frustração, que naquele instante, surge em minha frente, aquele animal repugnante: um jegue. Não preciso nem lhes dizer que fiquei apreensiva e sem nada entender, além de profundamente irritada e indignada. Nunca pensei o quão desaforado o diabo pudesse ser, era a gota d’água. Obviamente, questionei sua atitude (agora a voz tornava-se ultra-imponente- se é que isso existe?!): - Estás a me importunar?! Vendi-te minha alma, agora cumpra com o dever de trazer-me Tiegue!!!
O diabo lançou-me um olhar irônico, dizendo-me calma e satiramente : - O único Tiegue que conheço é esse jegue, por isso se dê por satisfeita e aproveite de sua companhia, pois tens apenas mais trinta segundos.
Fiquei deveras deprimida, mas já estava acostumada em não obter aquilo que realmente almejava, por isso abracei-me naquele animal que já não me causava tanta repulsa, durante o tempo que me restava.