Tuesday, March 13, 2007

Um segundo


Arlindo inspirou profundamente o frescor da chuva que subia ao tocar a terra, após em um movimento decidido e prolongado atirou-lhe as rosas vermelhas que segurava na mão esquerda, despedindo-se de um passado sufocante, Giovana.


A porta bateu em sua cara, sem justificativa preconcebida, obviamente supunha o motivo daquele ato de brutalidade. Porém, perfumara-se, preparara-se com todos os seus desejos, ornamentara-se como uma árvore de natal, estava ansioso para vê-la após longos 30 dias. Trinta dias? Não parecerá a vós de tamanha importância este período de distanciamento, entretanto para este tipo de relação que vos é apresentada, um segundo poderia ser fatal.


Giovana, estudante de Belas Artes, viajou para Paris no ímpeto de aprofundar seus conhecimentos. Deixara seu coração em Pelotas, sua cidade natal, onde tantas vezes selara seu amor com Arlindo.


Arlindo nunca nem se assemelhara às qualidades artísticas e profissionais de Giovana, entretanto, era um amante atencioso, e logo em um primeiro contato, não imediato, mas íntimo, conquistara os sentimentos da exímia artista.


Giovana dizia achar o cemitério um local romântico, propício para juras de amor – já que Arlindo estava fadado a zelar o sono eterno, era coveiro – todavia, a sensível artista plástica só via naquele local melancolia e hostilidade. Se não fosse o carinho cedido pelo inspirado amante, jamais teria retornado por livre e espontânea vontade àquele local.


Além de sua amada, o único orgulho que tinha e se igualava a esta era o seu jardim. Afirmava isso às poucas pessoas que tinha contato, pois se orgulhava de seu desapego às coisas concretas. Entretanto, sua característica de não-materialista não era uma opção, apenas nunca tinha obtido oportunidades de colecionar e possuir bens. Assim, não tinha ambição e conformava-se com seu viver contido, já que possuía um grande amor para escapar da monotonia.


Entendamos, porém, a complexidade de seu jardim, segredo este que ficará guardado entre nós para que Giovana não descubra e se desaponte a ponto de abandonar o nosso colecionador de corpos e flores. Afinal, não unicamente cultivava flores, mas estabelecia um tipo para cada corpo enterrado em seu cemitério.


Assim, para pessoas impulsivas, imprudentes, falecidas em um acidente de carro, suicídio, ou algum tipo de morte em que elas fossem direta ou indiretamente responsáveis, utilizava arbustos espinhosos. Já, para indivíduos calmos, e estáveis, cuja morte normalmente acontecia durante o sono, optava entre murta, lírio ou rosa.


Para aqueles cuja qualidade de curiosos é preponderante, a ponto de causar-lhes a morte em overdose ou na prática de esportes radicais, Arlindo oferecia-lhes acácias ou margaridas. Quando se tratava de um vivente introvertido e tímido, normalmente vítima de morte acidental, assassinato, descuidos na área de trabalho ou domésticos, era preferível a tília.


No caso de se tratar de indivíduos ambiciosos e vaidosos, cuja morte comum é o enfarto, Arlindo não tinha dúvidas em os ornamentar com trigo, e especialmente girassóis. Aos afetivos, cuja morte não se distanciava do próprio amor, verbena ou sabugueiro.


Giovana perguntava-se freqüentemente se o amor entre ela e Arlindo seria capaz de suportar a distância. Nunca confiara em ninguém, nem nos seus próprios pais, sequer em si própria, como poderia agora acreditar neste homem, que de uns tempos para cá lhe parecia irresistivelmente sedutor?


Não havia cultivado o ciúme em suas outras relações, até porque eram efêmeras demais para estabelecer qualquer relação de posse que despertasse a sensação de insegurança. Suspeitava nunca ter amado até então, e conformava-se em não ser capaz de tal sentimento sublime, pois só então percebia que seu orgulho era intenso demais para abrir mão de si própria a fim de fazer o bem a outrem. Arlindo a fazia sentir bem, mantinha sua relação com este, pois ele também a fazia sofrer, dando-lhe a sensação de nunca poder possuí-lo por completo, assim viajaria para bem longe, se ausentaria por um mês na tentativa de amenizar o amor que como chama invadia-lhe o peito.


A viagem para Paris estava marcada e a despedida dos amantes foi dolorida e inflamada, como se fosse um último adeus aos olhos, um último beijo às bocas.


O mês de março pareceu arrastar-se para Arlindo, fazendo com que este se dedicasse com afinco ao cultivo de seu jardim, estranhamente o número de corpos cresciam consideravelmente, ocupando-lhe mais os pensamentos. Giovana entreteu-se com o curso de Belas Artes, com as novas paisagens e com os calorosos amantes parisienses, entretanto ao retornar a Pelotas, não pôde evitar as saudades de seu Arlindo.


Assim que respirou os primeiros ares de sua cidade natal, correu aos braços de Arlindo com voracidade. Havia desbravado seu mundo interior e agora queria dividi-lo com seu amante, fazê-lo parte de sua felicidade e satisfação. Sabia onde encontrá-lo, para Giovana os homens tinham uma certa previsibilidade que dava ás mulheres uma característica de superioridade, já que nelas imperava o enigma diante do provável homem.


Esteja ou não certa Giovana ao determinar esta qualidade aos homens, acertara ao tratar-se de Arlindo, pois ao chegar ao cemitério, lá estava ele, só que acompanhado de uma mulher alta, magra e sedutoramente misteriosa.


Sentiu seu sangue pulsar bruscamente em suas veias e artérias, suas mãos a suar, sentia dor, sentia-se traída, quem era aquela mulher afinal? Por qual motivo inclinava-se para Arlindo daquela maneira? Não sabia, não queria saber, apenas gostaria de poder fazê-lo sentir-se da mesma maneira que ela, a ruir, com vontade de arrancar o próprio coração e entregá-lo nas mãos de Arlindo. Que viver miserável! – pensou Giovana. Que estúpido e contraditório amor! Precisava abandonar aquele local naquele exato segundo, entretanto permanecera imóvel, olhando-o e esperando que estivesse sob efeito de algum narcótico, tendo alucinações. Porém, não, seus olhos não mentiriam, era o momento de prosseguir seu caminho.


Já se vão três dias de sua chegada e nem um telefonema. Um desespero começava a corroer-lhe os sentidos, uma tentativa de não desabrochar, porém como todas as flores na primavera, Arlindo aflorou o amor que o sufocava. Banhou-se no néctar da paixão, e traçou um rumo não questionado, não considerou desavenças, frustrações, ameaças, simplesmente foi. A probabilidade não era suficiente para fazê-lo sequer imaginar o que o aguardava no apartamento de Giovana, imaginou-a a deleitar-se nos braços de um pomposo parisiense... Sentiu raiva e desprezo de si próprio por duvidar desta forma do tão puro amor que haviam construído, ele e sua Giovana. Talvez, estivesse ainda repousando da exaustiva e longa viagem que fizera, decidiu, então, lhe fazer uma surpresa, assim decidido e embalado por extremos sentimentos de afeto, foi à Giovana.



Para Giovana as horas eram indiferentes, contava o tempo segundo a dor que sentia, entretanto pela primeira vez pensou ser capaz de esquecer Arlindo...Se não fosse por aquela visita inesperada... Sua vontade foi de ter pousado seu corpo sobre a quente carne de Arlindo e beijar-lhe os doces lábios, acariciando-lhe a pele e sentindo suas ásperas mãos em seus mamilos intumescidos, estava sendo consumida pela febre da saudade. Todavia, a cautela era necessária, não poderia exceder-se em seus desejos a ponto de entregar-se àquele que traíra o seu amor, cansara de versos camonianos...Não podia mais “ter com quem nos mata lealdade”. Sua inspiração conquistada em Paris fora-lhe tomada de supetão ao deparar-se com o ato de covardia de Arlindo, precisava esquecê-lo, ou em pouco tempo estaria à mercê das traças, que quando criança, roíam os vestidos embabados de sua mãe, e agora tratariam de roer-lhe os próprios ossos.


Era chegado o momento de uma decisão madura, esqueceria Arlindo, poria um fim a essa paixão, ou o que quer que fosse, e novamente estaria livre para seus bailes, eventos sociais, reuniões, não que sentisse falta disso, porém facilitavam e garantiam-lhe a venda de alguns trabalhos. Este era o ponto culminante, decisivo, o ponto final.


Passando os olhos tristes pelas ruas através de sua janela, avistou um jardim de flores multicoloridas que ocupavam agora a melancólica rua de sua casa, e lembrou-se das flores que Arlindo cultivava como se fossem bibelôs. E que se um dia fossem arrancadas por quaisquer que fosse o ser, até mesmo divino, dizia ele, não teria perdão e seria penalizado sem compaixão. Porém, Giovana como era uma típica pisciana, desligada e fascinada mais no mundo sensível do que da própria racionalidade, apanhou de pronto, logo que de relance viu o belo botão de jasmim que exalava seu perfume encantador. Arlindo ao perceber a atitude catastrófica cometida por sua amada-Giovana ao seu amor – o jasmim, foi tomado por nervosismo imensurável, entretanto à prova de que seus sentimentos para com Giovana eram demasiadamente profundos e sinceros, não ousou repreendê-la, tratando de socorrer o jasmim de suas mãos e pousar-lhe sobre as madeixas louras de seus cabelos, realçando sua beleza. Ela, lembrando-se das recomendações feitas por Arlindo a respeito das flores e conhecendo sua profunda relação com estas, comoveu-se com a compreensão de seu amado ao não reprimi-la.


Este fato em sua memória preencheu-lhe de esperanças e questionamentos que percorriam seus pensamentos incessantemente. Pensou, e se de repente aquilo não fosse uma legítima traição, mas um contato casual e sem importância? E se ele ainda a amasse como outrora, como quando sacrificara suas flores por ela?


Além disso, não podia negar que os momentos ao seu lado tinham sido fantásticos, suas carícias eram insubstituíveis...Sim, poderia perdoá-lo, o que não podia era suportar a sua ausência. Esqueceria todas as injúrias, poderiam recomeçar tudo, fariam planos para o futuro, aprenderia com os erros cometidos. Giovana apercebia-se enfim que não poderia mais viver sem Arlindo, estava entregue aos feitiços do coração.


Dias antes...


Após tal aparição, cambaleou nostálgica pelas ruas nas quais vivera pouco mais de três quartos de sua vida. Não era o momento propício para compreender atitudes de outrem – especifica-se, Arlindo – entretanto, tratou de tomar suas próprias resoluções: uma carta de despedida. Acreditava com esta por um fim à dor que sentira ao avistar seu amado e sua amante, que já não era mais ela, Giovana, mas uma qualquer, ainda que bela, uma qualquer.


Estipulou os objetivos da carta e decidiu que esta deveria ser breve, e pouco explícita, que não parecesse a Arlindo uma vingança, mas que o fizesse sentir rejeitado, uma indiferença para Giovana. Imaginou sua dor ao ler a carta, e sentiu-se cruel, prazerosamente cruel.


Carta


“Procuro em simplórias palavras descrever o presente momento de meus sentimentos para ti, meu doce Arlindo. Espero que compreendas sem me guardar pesar que meu coração foi subitamente apossado por um rapaz parisiense, e sem qualquer intenção de se ser incorreta e insincera com o grande amigo que és, através desta, comunico-lhe o fim desta paixão, porém abro portas a uma amizade, na qual, não tenhamos pressa em solidificar por serem nossas diferenças demasiadamente explícitas. Com carinho, Giovana”.



Em três dias, exatamente, a carta seria lida e tocada por Arlindo, a tão derradeira carta. Um dia após, saudoso, visitar Giovana, ou ao menos tentar já que ela não havia lhe dado chance de falar-lhe, nem sequer compreender sua inesperada atitude.


Este era o segundo fatal, aquele no qual ao ler rapidamente a carta, sobressaiu-se a palavra fim. Nunca fora muito bom com o substantivo fim, afinal lidava com o fim das vidas o tempo todo, por isso tinha tanto apreço às suas rosas, margaridas, jasmins, enfim toda a vida e recomeço que seu jardim dava aos corpos que jaziam ao encontrar a fatalidade do fim. Ele próprio se considerava um fim, e Giovana era sua vida, seu impulso vital, sem ela, estaria perdido, era seu segundo fatal.


Uma frieza que há muito tentava consumi-lo fez-se parte em seu corpo e alma. Segurando de mãos trêmulas a carta que parecia absorver o suor, fluidos estes que advinham de uma forte ardência no estômago: uma indigestão da pizza recém ingerida, pós-carta lida. Da mágoa, não tinha dúvida, assim como da vingança certa, ambas solidificando-se e progredindo geometricamente à sua dor.


Quis, um dia, desvendar os mistérios do mundo, agora, só queria encontrar forma rápida e eficiente de findar com o sofrimento de perder Giovana. Nome este, tantas vezes, louvado em suas orações, era, então, um perjúrio, uma afronta até mesmo às suas fezes.


Em passos acometidos, dirigiu-se ao ateliê da artista que ficava próximo ao cemitério, aproximando, assim, os amantes. No caminho, arquitetava meticulosamente o ato da destruição, com o qual, acreditava dar um fim a tudo, denunciar o crime passional do qual fora vítima e objeto. Sem precedentes de agressividade planejada a qualquer que fosse o ser habitante da face da terra, Arlindo agiu comandado por um desejo incontrolável de recuperação de sua integridade amorosa. Assim, chegando no local almejado, avistou o semblante tão reconhecido, mas paralelamente tão dolorido.


Foi um impulso desmedido nas mãos que se direcionaram à mesa lateral, agarrando o instrumento de ponta, também fornecedor de arte. Nas costas, sentiu, Giovana, na medida do coração ainda apaixonado, arder a goiva introduzida por Arlindo, o motivo de sua paixão. A morte foi lenta e angustiante. No rosto de Giovana desenhava-se um sorriso meio torto, e nas mãos gélidas, um retrato antigo do jardim de rosas vermelhas, plantadas por Arlindo, a flor preferida da artista.